Sempre
que o Homo sapiens opera em seu modo habitual, naquela zona de conforto
vendida como “natural”, o desconforto acaba sendo das outras espécies. Mas e
quando acontece o contrário? Quando é a nossa espécie que precisa se
reinventar, com a economia e seus movimentos sendo desacelerados à força, a
situação muda de figura: aí é a vez da flora e da fauna reclamarem seus espaços
de origem.
Quer
um exemplo? Em tempos de Covid-19, centenas de registros vêm mostrando a
bicharada aparecendo em ambientes urbanos: vimos uma medusa nos canais de
Veneza, coiotes em uma praia de São Francisco, crocodilos andando pelas ruas da
Carolina do Sul, cangurus em Adelaide, leões marinhos em Mar Del Plata e por aí
vai. Bastou um momento de desaceleração para que bichos e plantas pudessem
dizer “estamos aqui, olhem!”.
Ao
contrário, parece oportuno dizer que brotam, também, nas redes sociais, milhares
de cliques que se voltam ao céu colorido pelo pôr do sol, visto de dentro das
nossas “gaiolas”. Afinal de contas, seja como for, quem é que está preso agora?
Independentemente
do coronavírus, em algumas regiões do estado de São Paulo, onde os ciclos
econômicos tradicionais se esvaíram, a Mata Atlântica – tão devastada nos
últimos séculos – vem ressurgindo e dando oportunidade para o desenvolvimento
de novos negócios mais sustentáveis. Mas também é tempo de
retrocessos: a publicação do novo atlas do bioma, realizada recentemente pela Fundação
SOS Mata Atlântica, mostrou,
após anos de esperançosa redução, significativo aumento de 27% no índice de
desmatamento. Na Amazônia, o crescimento foi ainda maior: 55% nos primeiros
quatro meses deste ano, comparado ao mesmo período de 2019, segundo o INPE. “O
tempora! O mores!”, bradaria novamente Cícero.
Assim,
processos evolutivos, a ocupação dessa ou daquela espécie, estão
permanentemente em movimento, embora não os percebamos de maneira tão evidente
como agora, quando fomos praticamente obrigados, por um microrganismo, a
desacelerar. A vida é mesmo uma grande e constante transformação.
A
chegada da nossa espécie no planeta, espantosamente recente se levarmos em
conta a idade da Terra, coincidiu com o seu momento de maior biodiversidade,
mas parece não termos exata noção do privilégio que esse acaso nos
proporcionou. Prova disso é que, com os destemperos comportamentais da
humanidade, somos os responsáveis por uma gigantesca onda de extinção.
Vide
números alarmantes do aumento contínuo no desmatamento das nossas florestas e,
consequentemente, do lar de milhões de espécies – das 10 milhões de espécies
que estima-se existir na Terra, mais da metade está nas florestas tropicais. E isso,
evidentemente, não é exclusividade do Brasil. Dados da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e
Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), apontam que as taxas de
extinção da fauna e da flora estão se elevando em ritmo acelerado em todo o
mundo: avalia-se que, em média, a quantidade de espécies nativas na maioria dos
principais hábitats caiu cerca de 20% nas últimas décadas.
Quando
a pandemia se tornar uma mera recordação, acreditem, voltaremos a acelerar a
economia, essa admirável entidade que a quase todos controla. No rastro desse
impulso, a humanidade novamente avançará e chegará nas bordas dos últimos
refúgios selvagens. Será mais um golpe na biodiversidade, nas águas, nas
relações com os povos tradicionais. E, mais cedo ou mais tarde, contra todos
nós!
Como
resultado, nesse conturbado contato na fronteira também levaremos nossos
animais domésticos, misturando-os com a fauna silvestre. Nesse ambiente, um
humano faminto ou chegado a excentricidades, resolverá comer algo de gosto
duvidoso, como um morcego ou um pangolim, e contrairá um dos milhares (ou serão
milhões?) de tipos de vírus que estão quietinhos em seu selvagem recanto.
Esse
contato, claro, sempre existiu. A diferença é que, no passado tribal, a nossa
baixa densidade populacional e o isolamento restringiam a magnitude dos eventos
e das epidemias. Empresas e governos não quebravam, simplesmente porque ainda não
existiam. Quantos morreram jamais saberemos ao certo, mas a conta agora é mais
fácil (e dolorosa) de ser feita.
Do
mesmo modo, também é certo que já existiam líderes que atribuíam as mortes por
doenças aos espíritos do mal. Sempre existiram charlatães e suas curas ditas
milagrosas. Deste processo ninguém sai feliz. Advém a pandemia, peste, flagelo.
No rastro do sinistro vem a crise, ou crash, ou quebra, ou falência. E mais
flagelo.
Aí
vem aquilo que, como espécie pretensiosa que somos, denominamos de recomeço. E
o nosso avanço é retomado, assim como a dança dos índices do mercado, reflexo
maior do nosso falso domínio sobre o natural. Mas quem sabe agora estejamos mais
abertos ao aprendizado, não é?
A
esperança é que desses tempos tão desafiadores emerja, enfim, um mundo melhor,
que nos ofereça alguma noção do privilégio que é viver no único planeta que
sabemos existir vida. Que a sociedade clame
para que cessem o desmatamento, a grilagem e os garimpos ilegais. Que nossas
escolhas se fundamentem naquilo que é equilibrado e justo – para todas as vidas
e não apenas para nossa própria existência. No qual o conhecimento científico seja
valorizado acima das crendices e dos desvarios políticos.
Que
possamos fundamentar a economia em negócios lucrativos e verdes, com carbono
neutro, com rios e mares limpos, com menos produtos de fontes fósseis e com menos
pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Um mundo no qual a biodiversidade,
os recursos e a beleza estejam disponíveis para quem nos suceder. A isso damos
o nome de sustentabilidade.
Ah!
Quanto as estrelas, elas reapareceram também, mas quase sempre estiveram lá.
Seus ciclos de vida e morte não estão nem aí para os altos e baixos do Homo
sapiens.
Paulo Groke - Diretor Superintendente do Instituto
Ecofuturo, organização que, há 20 anos, atua para conservação ambiental e
promoção da leitura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário