Era
a primeira vez que um caso de violência doméstica chegava à OEA. Começava ali
uma caminhada que alteraria a visão da sociedade brasileira e os paradigmas da
Justiça em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres. Até
então, autores desses tipos de crime sequer eram punidos, pois a violência
doméstica era tratada como ofensa de menor potencial, compensada até com
distribuição de cesta básica.
Entre
as recomendações feitas pela OEA, o Brasil precisaria finalizar o processamento
penal do responsável pela agressão contra Maria da Penha, indenizá-la simbólica
e materialmente pelas violações sofridas e adotar políticas públicas voltadas à
prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
“As
agressões domésticas correspondiam a 70% dos casos levados aos juizados
especiais criminais. E não eram punidos com prisão. Lá, o Judiciário buscava
conciliar as vítimas com os agressores para resolver os conflitos. Não só se
criava um conflito legislativo como se contribuía para naturalizar ainda mais a
violência doméstica”, diz Leila Linhares Barsted, coordenadora executiva da ONG
Cepia e uma das advogadas feministas que ajudaram na elaboração da Lei n. 11.340/2006, a Lei Maria da Penha.
Naturalização da violência
Naquela
época, o país não contabilizava as mortes decorrentes do machismo. Não havia
recorte estatístico desse crime, que só veio a ser qualificado como feminicídio
em 2015. O próprio caso Maria da Penha só foi levado à corte internacional
porque duas Organizações não Governamentais (CEJIL-Brasil e CLADEM-Brasil)
utilizaram o livro “Sobrevivi, posso contar”, de 1994, escrito por Penha, como
prova de como o Estado brasileiro ignorava a violência doméstica.
“O
livro foi escrito quase como um desabafo, quando percebi que a Justiça não era
justa. Lutei contra muita burocracia e muito machismo”, diz a cearense, que
ficou paraplégica com a violência sofrida e batizou a Lei n. 11.340/2006.
O
Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que asseguram direta ou
indiretamente os direitos humanos das mulheres. Entre eles, as Recomendações da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (Convenção Belém do Pará, de 1994), e a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979). Enquanto uma
frente buscou revelar internacionalmente a omissão do Brasil em relação ao
assassinato de mulheres, uma outra trabalhou pela criação, no país, de uma lei
que protegesse a mulher e a família nesses casos.
Após
análise das propostas de leis que tramitavam no Congresso, assim como das
convenções e acordos ratificados pelo País, a frente – formada por advogadas,
ONGs e demais envolvidos com a causa feminista – elaborou um esboço de proposta
compatível com a legislação brasileira. Estava sendo gestada o que viria a ser
a Lei n. 11.340. O texto ainda passou pelo crivo de processualistas cíveis e
criminais antes de ser aprovado pelo Legislativo e, só então, encaminhado à
sanção presidencial. Nascia, em 2006, a Lei Maria da Penha – 23 anos depois do
caso que lhe deu origem.
Futuro sem violência
“Não
sinto ter havido Justiça no meu caso, mas sei que contribuí para mudar a vida
das pessoas. Sem isso, nada teria mudado. Antes da Lei n. 11.340, não havia a
quem recorrer. Ela veio para garantir um futuro sem violência para as nossas
filhas, nossas netas, e todas as mulheres brasileiras. Isso é o que importa”,
afirmou Maria da Penha.
A
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), ministra Cármen Lúcia, costuma dizer que a Justiça que demora não é
justa. Foram necessários 19 anos e 6 meses para que o autor das tentativas de
assassinato contra a farmacêutica fosse preso. Marco Antônio Heredia Viveros
foi preso em 2001. Dos 8 anos de pena, cumpriu 1 ano e 4 meses em regime
fechado e o restante em regime semiaberto e aberto.
Descaso na prevenção
Apesar
de ter implementado parte das orientações da corte internacional, o Brasil
corre o risco de voltar a receber nova advertência por conta do alto número de
feminicídios no país. “Por trás desses crimes, evidencia-se a falta de
políticas de prevenção, em especial, investimento na área de educação voltado
para criar uma cultura de respeito aos direitos humanos”, afirma Leila Barsted,
que é membro do Comitê de Peritas do Mecanismo de Monitoramento da Convenção de
Belém do Pará da OEA.
Para
Barsted, o País precisa urgentemente avançar. “Quando a mulher vai à delegacia,
a violência já ocorreu. O Brasil está devendo uma política de prevenção. Nas
escolas, na Justiça, no atendimento de saúde, em todos os setores da sociedade,
precisamos trabalhar com a cultura de tolerância e respeito. Não há como mudar
a cultura sem campanhas contínuas”, afirma. “Não podemos permitir que o Estado
mais uma vez se omita”, completou.
A
Lei Maria da Penha completa 12 anos de existência em agosto e o número de
processos que tramitam no Judiciário relativos a esse tema chega a quase 1
milhão, sendo 10 mil casos de feminicídio. Para Maria da Penha, que hoje
trabalha com a sensibilização da sociedade por meio de sua ONG Instituto Maria
da Penha, é mais que urgente que o Brasil cumpra a Lei que leva seu nome no
aspecto educacional.
“Para
curar o machismo, é preciso mudar hábitos e comportamentos que diminuem e
desqualificam a mulher. O machismo mata, e a omissão pode situar o Estado como
cúmplice”, diz Penha. A Lei n. 11.340 prevê a promoção de campanhas educativas;
ensinos de conteúdos sobre direitos humanos, igualdade de gênero e violência
nas escolas; capacitação permanente das Polícias e demais profissionais que
lidam com estes casos.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias
Agência CNJ de Notícias
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