No dia 22/01/17, o atual Código
de Trânsito Brasileiro completa 19 anos de vigência. Após 31 Leis que o
alteraram, com o complemento de 655 Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito
e com a possibilidade de ser revogado e substituído pelo projeto de novo Código
de Trânsito, em tramitação na Câmara dos Deputados (PL n. 8.085/14), quais são
as principais questões que ainda não foram resolvidas, para promover o trânsito
em condições seguras, objetivo maior de todo o Sistema Nacional de Trânsito?
Ressalto 4 assuntos que, apesar
de constarem da legislação de trânsito, até agora, não são realidade por
completo, e que prejudicam as ações desenvolvidas em prol da segurança viária:
1) Municipalização do trânsito
Quando substituiu o Código de
Trânsito de 1966, uma das bandeiras levantadas como inovadoras no atual CTB foi
a gestão municipal do trânsito, com a transferência de responsabilidades que,
antes, eram exclusivas dos Estados (por meio do respectivo Detran), como o
planejamento viário, as soluções de engenharia e intervenção na via, a
implantação de sinalização e a fiscalização de trânsito (em especial no tocante
ao uso da via).
O § 2º do artigo 24 estabeleceu,
expressamente, a necessidade de integração ao Sistema Nacional de Trânsito,
para que o município possa exercer as competências a ele delimitadas (cujas
regras necessárias à sua efetivação estão, hoje, regulamentadas pela Resolução
do Contran n. 560/15); todavia, não houve a previsão nem de prazo para que os
municípios se adequassem à nova realidade, nem tampouco regras de transição e
de competência subsidiária, a permitir que o Detran pudesse continuar exercendo
as competências a serem transferidas ao município, até que este estivesse em
condições de assumi-las (embora isso esteja ocorrendo em muitos Estados, o que
é juridicamente questionável, posto que a competência de órgão público deve ser
decorrente de lei e não, simplesmente, presumida).
Conclusão: atualmente, dos 5.570
municípios brasileiros, apenas 1.515 estão integrados ao SNT (sendo certo que
alguns deles apenas no papel, pois o órgão de trânsito ou não existe ou não
funciona, nos termos em que deveria), o que representa tão somente 27%, muito
embora sejam as localidades com maior frota veicular. Como não houve,
ressalte-se, prazo fixado (e nem há consequências expressamente previstas para
a omissão), os municípios menores simplesmente não assumem os cuidados com o
trânsito como se imaginou com o atual CTB.
Duas soluções importantes para
esse fato são:
I) o controle externo do Poder
Executivo (seja por meio do Poder Judiciário, seja pela atuação do Ministério
Público), para exigir a integração municipal ao SNT; e
II) a criação de consórcios
públicos, para que um único órgão de trânsito tenha circunscrição em várias
cidades, o que já é previsto como possível no artigo 6º da Resolução do Contran
n. 560/15, em conformidade com a Lei n. 11.107/05.
2) Inspeção de segurança veicular
A inspeção de segurança anual,
como exigência para possibilitar o licenciamento dos veículos, é obrigatória
pelo artigo 104 do CTB, sendo que foi regulamentada pelo Contran já no
primeiro ano de vigência do Código, com a edição da Resolução n. 84/98, que nunca
entrou em vigor, pois foi suspensa, pouco tempo depois, pela Resolução n.
107/99.
Como não ocorre tal inspeção,
muitos veículos permanecem circulando nas vias públicas, sem quaisquer
condições de segurança, e, pior, devidamente licenciados, pois, na completa
maioria dos Estados brasileiros (com exceção daqueles que, por conta própria,
criaram rotinas próprias), basta quitar todos os débitos pendentes (IPVA, DPVAT
e multas de trânsito), para a emissão do Certificado de Licenciamento Anual,
sem nem ao menos que o órgão de trânsito saiba se o veículo está ou não seguro.
Interessante que a Lei n.
13.281/16 promoveu alterações no artigo 104, a partir de NOV/16, para isentar
determinados veículos da inspeção veicular, o que ficou bastante contraditório,
pois, se nenhum veículo se submete à exigência, de que vale a exceção?
3) Educação para o trânsito
A educação para o trânsito não
funciona completamente, em especial por dois motivos:
I) As Escolas Públicas de Trânsito,
obrigatórias pelo artigo 74, § 2º, do CTB (e com critérios de padronização
determinados pela Resolução do Contran n. 515/14) deveriam existir em todos os
órgãos ou entidades executivos de trânsito, mas, ao contrário, funcionam
efetivamente em apenas alguns deles. Desta forma, o Sistema Nacional de
Trânsito deixa a desejar, na promoção de ações educativas para mudança
comportamental do usuário da via pública, limitando sua atuação, no mais das
vezes, à Semana Nacional de Trânsito (18 a 25 de setembro);
II) O artigo 76 exige a educação
para o trânsito em todas as áreas de ensino, por meio de planejamento e ações
coordenadas entre os órgãos de trânsito e de educação, para as quais o
Ministério da Educação deveria promover a adoção de currículo interdisciplinar
com conteúdo programático sobre segurança de trânsito; treinamento de
professores e multiplicadores; criação de corpos técnicos interprofissionais
para levantamento e análise de dados estatísticos; e elaboração de planos de
redução de acidentes de trânsito, o que nunca saiu do papel.
4) Aplicação dos recursos de
multas
O artigo 320 do CTB é claro: TODO
o dinheiro arrecadado com multas de trânsito deve ser aplicado,
exclusivamente, para a melhoria do próprio trânsito: em ações de engenharia,
fiscalização e educação (sendo que 95% sob responsabilidade do órgão
arrecadador e os outros 5% depositados na conta do Fundo Nacional de Segurança
e Educação de Trânsito – FUNSET, o qual também deveria ser direcionado, pelo
governo federal, para a mesma finalidade).
A concepção da lei é a de que o
dinheiro de multa de trânsito não deveria ser desejado, pois decorre da pena
aplicada a alguém que descumpriu a legislação e, portanto, colocou outros em
situação de risco; assim, o ideal seria que nenhum governante contasse com
esses valores, pois o que se espera é um nível de atuação do Poder público de
tal forma eficiente (incluindo a capacidade fiscalizadora) que nenhuma infração
fosse cometida (e, desta forma, nenhuma multa fosse aplicada). Multa é sinônimo
de infração e infração é sinônimo de insegurança.
O dinheiro que entra por esta
fonte para os cofres públicos deveria ser investido em mais condições de
trânsito seguro (e não para pagamento de outras despesas, ainda que igualmente
importantes), mas não é o que ocorre na maioria dos Estados e Municípios (e,
até mesmo, no âmbito federal): infelizmente, o desvio é a regra (e não estou a
usar a palavra “desvio” como indicativo de corrupção, mas como utilização
equivocada da receita).
As ações que podem ser custeadas
com a arrecadação das multas de trânsito estão reguladas pela Resolução do
Contran n. 638/16, devendo o gestor de trânsito atentar para sua obediência,
sob pena de responder por improbidade administrativa (no mínimo).
Uma modificação legal que deve
trazer um pouco mais de transparência nesta seara, foi a inclusão, pela Lei n.
13.281/16, do § 2º ao artigo 320, determinando a publicação anual, na internet,
da arrecadação e aplicação das multas de trânsito, o que permitirá maior
controle e conhecimento público do que anda acontecendo.
Estas são apenas quatro falhas de
aplicação do atual Código de Trânsito. Em minha singela opinião, de nada
adianta uma contínua alteração da legislação de trânsito, se não houver o
cumprimento do que nela já se encontra previsto (e já se vão 19 anos....).
JULYVER MODESTO DE ARAUJO - Mestre em Direito
do Estado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Mestre em Ciências
Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de
Segurança (SP); Especialista em Direito Público pela Escola Superior do
Ministério Público de SP; Capitão da Polícia Militar de SP, com atuação no
policiamento de trânsito, desde 1996, e atual Comandante da Companhia Tática do
Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de
Pós-graduação do Centro de Estudos Avançados e Treinamento / Trânsito - CEAT;
Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003; Integrante do Fórum Consultivo do Sistema
Nacional de Trânsito, sendo representante dos CETRANS da região sudeste por
dois mandatos consecutivos e, atualmente, representante das Polícias Militares
da região sudeste; Conselheiro fiscal da CET/SP, representante eleito pelos
funcionários, no biênio 2009/2011; Presidente da Associação Brasileira de
Profissionais do Trânsito – ABPTRAN; Comentarista do CTB Digital, espaço criado
pela Perkons e que disponibiliza o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) na
íntegra, comentado e com acesso gratuito; Autor de livros e artigos sobre
trânsito.
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