A mistanásia é definida como uma modalidade de término de vida, como
consequência da violação de direitos humanos, como o direito à saúde. Ocorre
quando um indivíduo vulnerável socialmente é acometido de uma morte prematura,
miserável e evitável. É possível caracterizar essa condição como o oposto da
eutanásia, que significa a morte tranquila e planejada para poupar um indivíduo
do sofrimento causado por alguma enfermidade incurável, a qual no Brasil não é
autorizada, mas legalizada em vários países.
Na seara
da Bioética e do Biodireito, fala-se também sobre a distanásia, que é o
adiamento da morte, quando, por exemplo, o médico ministra ao paciente todas as
drogas disponíveis, bem como utiliza a tecnologia para prolongar a vida e/ou
atrasar a morte, muitas vezes lhe propiciando sofrimento desnecessário. Também
é conhecida como “obstinação terapêutica”. Já a ortotanásia é um meio termo
entre a eutanásia e distanásia, por ser a morte natural com o mínimo de
sofrimento, utilizando cuidados paliativos. Dá-se quando, o médico trata o
paciente a fim de evitar-lhe sofrimentos; mas, em casos terminais, não utiliza
artifícios tecnológicos para atrasar a morte do paciente.
Normalmente,
a mistanásia atinge indivíduos excluídos do seio social que dependem das
políticas públicas de saúde na garantia de sua dignidade. Embora a Constituição
Federal garanta ao cidadão o direito à dignidade e à honra - além de
explicitamente dispor sobre a obrigação de o Estado oferecer a assistência
integral à saúde - na prática, a exclusão sócioeconômica representa condições
piores de habitação, educação e alimentação, o que por si já caracteriza que os
excluídos são justamente aqueles que mais precisarão do sistema de saúde,
embora sejam os que enfrentam as maiores dificuldades de acesso até para serem
consultados, quanto mais nesse momento de pandemia.
A
aceleração dos números de casos e mortes provocados pela Covid-19 no Brasil,
que agora ultrapassa os 13,5 milhões de pessoas infectadas e 350 mil vítimas
fatais, provocou também o aumento da mistanásia. Esse quadro está ocorrendo
nesse momento de epidemia pela falta de leitos de Unidade de Terapia Intensiva
(UTI) e de vagas de enfermarias no atendimento aos doentes com coronavírus,
pois as equipes e profissionais da área da saúde são obrigados a escolher, de
certa forma, quem deve morrer ou não. Não apenas isso, se considerarmos a falta
de coordenação do governo federal no que se refere a medidas de enfrentamento,
como a maior rigidez no controle do distanciamento social, a aplicação de
recursos em hospitais de campanha, a não observação da Medicina baseada na
Ciência, a demora na negociação para a compra de vacinas, enfim, veremos que
possivelmente muitas mortes poderiam ter sido evitadas.
Em 2020,
quando do início da pandemia, um levantamento Associação de Medicina Intensiva
Brasileira (Amib) demonstrou que o Brasil possuía 48.848 leitos de UTI, sendo
22,8 mil no SUS (Sistema Único de Saúde) e 23 mil na rede privada, ou seja,
cerca de 20 leitos por 100 mil habitantes. Tal índice é considerado
satisfatório e dentro dos padrões da Organização Mundial da Saúde, que
recomenda de 10 a 30 camas de terapia intensiva para cada 100 mil.
Por que então estamos sofrendo tanto nesse momento com o absurdo número
de mortes registradas e muitas delas pela falta de leito na UTI?
A ineficiência do Estado no combate a pandemia vai além da falta de
leitos, faltam oxigênio, equipamentos de proteção, medicamentos e equipes
capacitadas para atender a pacientes graves que precisam de tratamento
intensivo. Constantemente, tem-se publicado na mídia acerca da apuração de
responsabilidade do governo pelo número de mortos.
Entre
muitas pesquisas que indicam haver um número maior de mortes de pacientes
contaminados por Covid entre aqueles que são excluídos sofrem os efeitos da
desigualdade social, destaca-se a da Rede Nacional de Médicos e Médicas
Populares, a qual divulgou, em fevereiro, um estudo feito pelas pesquisadoras
Ligia Bahia e Jéssica Pronestino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), no qual identificaram que a taxa de letalidade varia de acordo com o
nível de escolaridade do doente. Entre os pacientes sem escolaridade, 71,3%
morrem; para os que cursaram até o nível fundamental a taxa cai para 59,1% e
para 47,6% entre os que cursaram até o fundamental 2. Nos níveis médio e
superior, a letalidade despenca para 35% para quem tem nível médio e para 22,5%
para os de nível superior.
Continua a pesquisa no sentido de que as cidades IDH baixo tiveram 38,3%
de cura e 61,7% de óbitos e os com índices médios 35,7% de alta médica e 64,3%
de mortes. Os dados de cidades com taxa altas de desenvolvimento são os mais
equilibrados, com 48,5% de altas e 51,5% de óbitos. Já os municípios com IDH
muito alto apresentam 67,1% de cura, contra 32,9% de mortes.
Fato é que a ocupação de mais 90% das vagas de terapia intensiva em
diversas cidades do país, somadas a escassez de respiradores e de equipes
capacitadas, os profissionais da saúde se veem obrigados a selecionar os
pacientes que têm prioridade na transferência de um leito de enfermaria para
UTI. Não deveria caber aos profissionais de saúde esse tipo de julgamento profissional,
mas o momento caótico faz necessário que médicos e enfermeiros avaliem quais os
pacientes têm a oportunidade de sobreviver com tratamentos intensivos ou não.
Importante frisar que a situação ocorre pelo anunciado colapso no sistema de
saúde, não se trata de uma surpresa, pois há um ano já convivemos com a chegada
da pandemia, inclusive com a decretação de emergência em saúde pública e de
calamidade pública para que recursos pudessem ser utilizados no tratamento dos
pacientes contaminados.
A AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE
(Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) AMB
(Associação Médica Brasileira) lançaram um documento com recomendações para
alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19, exatamente
para dar diretrizes éticas e legais aos médicos, que se encontram pressionados
por todos os lados em razão de serem eles os responsáveis pela avaliação de
quem irá prioritariamente ocupar o leito de UTI. Na verdade, não é novidade no
SUS que pacientes precisem muitas vezes serem escolhidos, segundo sua gravidade
e chance de sobrevivência, para ocupação de um leito.
O
fenômeno da mistanásia não representa um abandono de paciente, mas sim uma
consequência do colapso do sistema. A escolha não exime o profissional de
oferecer ao paciente preterido de todos os cuidados no leito de enfermaria, mas
uma chance de sobrevivência pode ser perdida pela ausência de cuidados
intensivos.
É uma decisão drástica criada pela completa saturação dos recursos da
UTI no país e do "gargalo" no atendimento à população. E, na maioria
dos casos, apesar de parecer cruel, a análise do atendimento é feita não só
pela ordem na fila, mas também pela chance de sobrevivência. Hoje é crescente
número de pacientes mais jovens com quadros grave o que reflete num tempo maior
de internação e, por fim, na escassez de vagas.
Garantir o acesso à saúde, como o contrário de doença, passa também por
melhorar as condições de vida da população. A pandemia apenas escancara o que
se sabe há tempo: o Brasil está entre os países com os piores números no que se
refere aos problemas sociais existentes. Grande parte da responsabilidade desse
cenário está no Estado que, pela ausência de políticas públicas, eterniza esses
problemas e as desigualdades sociais. Diante de um quadro ainda mais complexo
na saúde, a não observância de direitos humanos, garantidos na constituição,
tem culminado em morte: a mistanásia.
Sandra
Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde,
doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, fundadora
e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos
Campos (SP) entre 2013 e 2018, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados
e diretora jurídica da ABCIS.