Era uma
segunda-feira, dia 09 de abril de 2018. Café da manhã. Marido para a esposa:
“Mulher, o que você está achando do nosso casamento? Está uma droga, né? Vamos
nos separar”. Sim, a frase não terminava com um ponto de interrogação – o que
seria o convite para uma conversa – ela terminava com um ponto final
mesmo, uma conclusão, um término seco e cruel, simples assim. A esposa no caso
era eu. O marido, meu ex. Fui para o fundo do poço naquele mesmo instante, uma
viagem direta e “non stop” para um lugar frio, tenebroso e assustador, que
durou alguns meses, mas que mais pareceram séculos!
Assim começa o meu
relato autobiográfico sobre o pior e o melhor momento da minha vida. O melhor?!
Sim, pois a pior experiência acabou me trazendo de volta à vida, uma travessia
para minha melhor versão. Como assim?! Pois é…com aquela novidade bombástica
fui parar lá no fundo do poço, lá no fundinho mesmo. Mergulhei nas profundezas
do meu inferno existencial, fui tomar um drink com o capeta, sofri com uma das
maiores dores espirituais que uma pessoa comum pode experimentar (dizem que a
dor de uma separação só perde para a morte de um filho).
E foi assim comigo,
depois de longos e bons 15 anos de casamento, a relação definitivamente não
funcionava mais. Meu ex-marido teve a coragem de fazer o que eu não tinha,
colocar um ponto final na nossa história. Isso me tirou completamente o chão.
Mesmo estando numa vida a dois muito solitária, eu insistia em não enxergar a
realidade e muito menos agir a partir dela. Me escondi no quarto escuro do meu
castelinho ilusório e de lá não vi a enorme tempestade que teimava em pedir
passagem.
Vivia meus dias
cuidando da rotina daquele castelo para que todos os seus habitantes estivessem
bem cuidados, bem nutridos e bem-educados. Mas talvez não tenha cuidado de algo
muito precioso, da qualidade das minhas relações, principalmente da minha
relação comigo mesma e, por consequência, da minha relação com o meu marido. E
com aquele término inesperado para mim, por um tempo me deixei carregar toda a
culpa sozinha, quis assumir todos os erros, colocando o outro num pedestal
imaginário. Estava esquecendo que uma relação nunca acaba apenas de um lado, a
responsabilidade é sempre compartilhada.
Nosso
casamento começou feliz e muito rápido. Cerca de 30 dias após nos conhecermos
fomos morar juntos. Tínhamos praticamente a mesma idade, 32, 33 anos. Éramos
dois executivos de multinacional cheios de vida e trabalhávamos na mesma
empresa (isso foi uma coincidência impressionante do destino, pois nos
conhecemos pela internet sem saber da existência um do outro). Já havíamos
vivido outras relações e a gente sabia o que queria. Não éramos mais tão
jovenzinhos. Queríamos casar, montar nosso castelinho, ter nossos príncipes. E
eles vieram. Depois da perda de uma gestação, fiz um tratamento de saúde e os
gêmeos nasceram. Eram a sensação!
E foi na época em
que os meninos nasceram que a vida a dois começou a ficar pesada e menos
divertida. Se por um lado, a felicidade pela existência dos dois era imensa, a
qualidade da relação do casal foi começando a perder a conexão. Foi tudo
acontecendo devagar, sem a gente perceber. E foi crescendo. O peso da rotina
com as crianças, as responsabilidades com a casa, um breve período de
desemprego do marido, as três mudanças de apartamento que fizemos, o stress do
trabalho, as duas cirurgias que precisei fazer quando os meninos ainda eram
bebês, o desafio da dedicação aos estudos…enfim, tudo foi se somando e o
cansaço pesando sobre as minhas costas (nas dele também, mas aqui vou falar
pela minha perspectiva).
E foi logo após o
nascimento das crianças que, sem perceber, desenvolvi uma tendência à compulsão
alimentar. Comia mais do que o necessário em busca de prazer imediato para
aliviar o fardo da vida. Buscava me recompensar, me aliviar. Era muito
chocolate, doces e uma dieta com excesso de carboidrato que me proporcionava
satisfação imediata – assim como uma droga ou álcool, mas que, em seguida, me
deixava pesada, sem ânimo e sem vitalidade. Me faltava disposição e fui
inconscientemente fazendo escolhas sobre para onde direcionar a pouca energia
que conseguia ter.
As pessoas me viam
como uma excelente profissional e uma mãe exemplar, acima de qualquer suspeita.
E de fato eu era, e muito! Eu colocava toda a minha energia nessas coisas,
nesses pratinhos que não podiam cair. Mas o que elas não sabiam é que isso era
a um custo alto para mim. Só bem mais tarde consegui elaborar e entender que o
que sentia eram sintomas claros de depressão. Eu vivi com uma depressão
moderada durante muitos anos, mas disfarçava tão bem que ninguém percebia,
muito menos eu.
Colocava toda
(pouca) disposição no que julgava ser mais prioritário e urgente na vida, ou
seja, no meu trabalho e na rotina das crianças. Não sobrava quase nenhum ânimo
para me cuidar, para me sentir bem comigo mesma, com meu corpo, para me sentir
mulher, feminina, desejável. Não dei conta do recado. Não consegui ser supermulher.
Namorar? Ai que preguiça…“Amor, pode ser outro dia?!”. Era isso que muitas
vezes meu marido ouvia de mim, e quase nunca com palavras. Uma falta de
disposição enorme tomava conta de mim e eu me sentia muito errada com isso!!
Estava muito
cansada daquela situação e não encontrava saída. Não achava nada que fizesse
sentido para me tirar daquilo. Minha relação com meu corpo estava cada vez
pior, meu peso não parava de aumentar. Eu comprava roupas cada vez maiores e me
sentia péssima, tentando me convencer de que aquilo era normal. Meus exames
médicos apontavam alterações, desde colesterol alto até gordura no fígado. Me
sentia morta em vida. Entrei no modo de economia de energia total.
E mesmo estando
assim com meu corpo, meu marido me desejava. E muito! Isso nunca foi um
problema pra ele, com o peso que era pra mim. Mas como eu não correspondia aos
seus estímulos, ele, sem entender, começou a acreditar que eu o rejeitava. Tudo
virou um grande mal-entendido entre a gente e só anos mais tarde, depois do
rompimento, conseguimos elaborar, entender, aceitar e perdoar. Mas o estrago já
estava feito. Nos divorciamos. Hoje somos bons amigos, mas a relação como
casal terminou.
Passar por essa
experiência tão dolorida e intensa de uma morte em vida me tocou tão
profundamente que acabou me mobilizando definitivamente para a luz. Fiz minha
escolha por querer sair daquelas trevas, daquele fundo do poço existencial ao
invés de me afundar ainda mais. Aquele lugar era terrível e estar lá me fez
enxergar e decidir que eu queria muito viver, desejava com toda a força da
minha alma voltar à vida plena e equilibrada, mas o caminho seria longo e
penoso. Havia muitas coisas para eu deixar morrer em mim. Eram muitos quilos
para eliminar, não só de gordura, mas de emoções ruins que eu não consegui
digerir durante anos. Sentia que minha aparência não traduzia a minha essência,
não era a expressão real do meu ser. E não me refiro a uma vaidade vazia, mas
falo de se gostar, de se sentir plena e em paz consigo mesma, em comunhão com a
vida. É como se eu não reconhecesse minha alma no espelho, como se meu espírito
estivesse desconectado do meu corpo e aquela não fosse eu. Eu não escolhia a
roupa para vestir, a roupa me escolhia, eu vestia o que me servia. Não tinha
mais vaidade, não me sentia feminina. Meu lado mulher estava bloqueado. E o
pior era que acreditava de verdade que essa situação não tinha mais jeito,
pensava que deveriam ser os hormônios, a menopausa que estava se aproximando.
Mas foi a partir
dessa dor tão profunda, que uma força descomunal foi crescendo dentro de mim e
me despertou uma enorme vontade de viver, de me cuidar, de me iluminar. Algo
tão intenso e tão forte, que eu não imaginava que um dia pudesse sentir. Queria
muito voltar a ficar bem comigo mesma, me sentir atraente, interessante e
desejada. Queria voltar a ser feliz!
Fui buscar muitas
ajudas e elas vieram de vários lados. Intensifiquei a terapia, bons amigos
apareceram para me dar colo, tive apoio de uma nutricionista maravilhosa com um
método inusitado (ela é iridóloga), precisei de um recurso químico sim (um bom
antidepressivo tem seu valor e não há nada de errado nisso), reconectei minha
dimensão espiritual, mudei meu guarda roupa inteiro, decidi começar a mexer o
corpo pra valer (fiz até aula de capoeira!), conheci as maravilhas do tantra,
fiz ensaios fotográficos para me enxergar e até comecei a enfeitar a pele com
tatuagens, decidindo dar início, aos 48 anos de idade, à minha coleção de
tattoos (uma delas é muito simbólica, pois traz no desenho o título da famosa
canção de Paul McCartney “Live and Let Die” – Viva e deixe morrer). Essa frase
traduz muito meu espírito hoje e meu momento de renascimento. Buscar viver e
deixar morrer o passado. Ficar apenas com o que é bom. Sem arrependimentos e
sem culpas, apenas com as boas memórias.
Ao longo desse
processo, eliminei 25 quilos em 6 meses, fui do tamanho 48 ao 38 e venho
mantendo o peso sem oscilações. Tenho disposição e energia para fazer coisas
que não fazia antes, desde um simples jogo de frescobol com meus filhos na
beira da praia até praticar capoeira.
Enfim, voltei à
vida renovada, com saúde e vigor. Não simplesmente para aquela vida cinzenta de
antes, mas para uma vida colorida que só o fundo do poço foi capaz de me
preparar. Hoje eu digo para quem me conhece e sabe da minha história: Se tiver
que sofrer, que sofra direito! Não olho para as pessoas que sofrem com piedade.
Acredito que, por alguma razão que não nos cabe entender nessa existência, elas
estão passando pelas dificuldades necessárias para a sua evolução espiritual,
de acordo com um plano de desenvolvimento contratado por elas mesmas antes de
virem para esse planeta. Mas a diferença entre os fortes, que sobrevivem aos
desafios da vida, e as pessoas que sucumbem diante das dificuldades, é o “como”
sofrer. Não sou a dona da verdade, mas sou a dona da minha verdade. E essas são
as lições que eu aprendi com o fundo do poço e que fizeram sentido pra mim:
- É no momento mais
profundo de dor que a busca pelo autoconhecimento se faz necessária como nunca,
seja em forma de psicoterapia, programas de desenvolvimento, terapias
alternativas, espiritualidade, etc. Vale o que fizer sentido para cada um;
- Aceitar a dor é
permitir-se o luto. Algo está morrendo dentro de nós e este é um processo lento
que precisa ser vivido, respeitado e profundamente sentido, sem distrações,
atalhos, muletas ou anestesias para fugir de si mesmo;
- Deixar para trás
aquilo que não nos faz bem – antigas crenças, atitudes e padrões de
comportamento que aprisionam o nosso ser real, nos colocando numa gaiola
emocional imaginária;
- Abrir-se para o
novo é permitir-se renascer. Nascer também dói e é um processo solitário, como
a dor do parto. Só a gente pode fazer isso. O querer é só nosso, de mais
ninguém, precisa se sentir chamado. Só tem sentido o que é sentido;
- Buscar e aceitar
ajuda, sempre. De onde ela vier e estiver. Procurar não se isolar do mundo.
Isso faz bem na hora da escuridão;
- Deixar o tempo
passar. O tempo é o senhor de todas as curas. Lidar com a ansiedade é fundamental.
As coisas acontecem no tempo que tem que acontecer. Não dá para acelerar o
ciclo da vida. A gente nasce, cresce, se desenvolve e morre. Não dá para fazer
uma criança andar com 5 meses. Há de se ter paciência para esperar o tempo
certo.
Enfim, aprendi que
o fundo do poço não é um lugar tão ruim assim se a gente tiver um olhar atento
e souber aprender com as sutilezas e a beleza das suas lições escondidas no que
parece dor e tristeza.
E você? Já esteve
no fundo do poço emocional? O que aprendeu com essa experiência? Como ela te
fez um ser humano melhor?
Fernanda Ribeiro Abrantes- trabalha com diálogos transformadores, é coach, facilitadora de grupos e consultora de desenvolvimento humano e organizacional. Em 2018 conheceu profundamente as dores do fundo do poço e saiu dele mais fortalecida, plena e feliz, procurando viver e deixar pra trás o que precisava morrer. Tem 48 anos, é divorciada e mãe dos gêmeos Caio e Rafael de 12 anos.