As análises indicam que a produção de ATP pela mitocôndria pode permanecer prejudicada mesmo após a eliminação do vírus (imagem: Darryl Leja/NHGRI/Wikimedia Commons) |
A infecção pelo SARS-CoV-2 pode suprimir em diversos tecidos do organismo a expressão de genes mitocondriais envolvidos com a produção de ATP, a molécula que serve de combustível celular. Descoberta abre caminho para a busca de estratégias capazes de reverter o quadro
Estudo internacional publicado em Science
Translational Medicine revela que o vírus da COVID-19 pode prejudicar
em diversos tecidos do organismo a função da mitocôndria – a “usina” de energia
das células –, criando um efeito global e prolongado em todos os órgãos do
infectado.
A descoberta de um efeito
sistêmico relacionado com a inibição da função mitocondrial abre caminho para a
busca de novos tratamentos tanto para casos graves da doença quanto para
pacientes com COVID longa.
“A disfunção mitocondrial
provocada pelo SARS-CoV-2 se mantém conservada, mesmo quando o vírus é
eliminado. Isso configura mais um efeito sistêmico da doença. Neste trabalho,
verificamos que o processo ocorre em vários tecidos do organismo, não só nas
células do sistema imune [monócitos] ou apenas no pulmão, como se imaginava
inicialmente. A disfunção mitocondrial pode ocorrer em todo o organismo e,
entre as consequências, está o aumento da resposta inflamatória em pacientes
graves”, explica Pedro Moraes-Vieira,
professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas
(IB-Unicamp).
A investigação que deu origem
ao artigo foi desenvolvida no âmbito do consórcio COVID-19 International
Research Team, que reúne pesquisadores de diferentes centros dos Estados
Unidos, Coreia do Sul, Dinamarca, Paraguai e Brasil. Os trabalhos são
financiados sobretudo pelo National Institutes of Health (NIH, dos Estados
Unidos). Este estudo em específico é a continuação de uma investigação iniciada
no ano de 2020, com apoio da
FAPESP, na qual a equipe da Unicamp, liderada por Moraes-Vieira, descobriu que
a COVID-19 poderia gerar disfunções na mitocôndria. Contudo, ainda não estava
comprovado que se tratava de um problema generalizado (leia mais em: agencia.fapesp.br/33237/).
Energia
roubada
No artigo mais recente, os
pesquisadores analisaram a infecção pelo vírus causador da COVID-19 em dois
modelos animais (hamsters e camundongos). Além disso, examinaram dados
referentes a mais de 700 amostras nasofaríngeas (de pessoas saudáveis e de
pacientes com infecção pelo SARS-CoV-2 em estágio inicial) e 35 amostras de
tecidos obtidas por meio de autópsia (de indivíduos com infecção em estágio
avançado) – todas coletadas durante a pandemia na cidade de Nova York.
As análises revelaram que o
vírus suprime a expressão de certos genes mitocondriais (vale lembrar que essa
organela possui material genético próprio, o DNA mitocondrial). Esse processo
afeta vias bioquímicas, a produção de energia celular e a ativação da resposta
imune. Isso faz com que a célula comece a usar uma via alternativa para
produção de energia, a chamada glicólise, que consiste na quebra da molécula de
glicose em duas moléculas de ácido pirúvico, que passam a servir como fonte de
energia para o vírus. Dessa forma, ele consegue se replicar mais, desencadeando
uma resposta inflamatória mais exacerbada, ou seja, a forma grave da COVID-19.
Mas o efeito sistêmico de
inibir a função mitocondrial não para por aí. “Observamos que, mesmo quando o
vírus era eliminado do organismo e a inibição dos genes mitocondriais no pulmão
havia cessado, a expressão desses genes mitocondriais no coração, rim, fígado
ou nos gânglios linfáticos permanecia prejudicada, levando potencialmente à
patologia grave da COVID-19. Acreditamos também que essa inibição dos genes
mitocondriais possa estar relacionada com a chamada COVID longa quando não há
mais vírus. O paciente está curado da doença, mas alguns sintomas e sequelas
persistem”, comenta Moraes-Vieira, que também é pesquisador do Experimental
Medicine Research Cluster (EMRC) e do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC),
um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP na Unicamp.
Como lembra o pesquisador, os
experimentos feitos em monócitos infectados pelo grupo da Unicamp, em 2020,
mostraram que a supressão dos genes mitocondriais quase inativou o processo de
fosforilação oxidativa, que utiliza a energia liberada pela oxidação de
nutrientes para produzir a molécula conhecida como trifosfato de adenosina, ou
ATP, que serve de “combustível” para as células.
“Isso cria a necessidade de
buscar novas formas de produzir energia, o que, em relação aos sintomas da
doença, pode se manifestar na forma de falta de ar e cansaço, por exemplo”,
diz. Esse dado foi publicado em 2020 pelo grupo de Moraes-Vieira.
Já as amostras nasofaríngeas e
de tecidos analisadas no estudo agora publicado mostraram que a supressão de
genes e da função mitocondrial estava ocorrendo em diferentes órgãos, como
coração, fígado, rins e gânglios linfáticos.
“Mesmo após a eliminação do
vírus, a inibição de genes relacionados à fosforilação oxidativa permanecia.
Parece ser um quadro irreversível se pensarmos em casos de COVID longa. Isso
abre caminho para buscar novos tratamentos que envolvam a restauração da função
mitocondrial. E é justamente nesse ponto que vamos focar nos próximos estudos”,
comenta.
O estudo Core
mitochondrial genes are down-regulated during SARS-CoV-2 infection of rodent
and human hosts pode ser lido em: www.science.org/doi/10.1126/scitranslmed.abq1533#con45.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/covid-longa-esta-ligada-a-dano-duradouro-na-mitocondria-a-fabrica-de-energia-das-celulas/50267
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