As doenças Raras são
condições em geral crônicas, progressivas e incapacitantes, que podem também
ser degenerativas e usualmente causam grande impacto na qualidade de vida dos
pacientes e de seus familiares, muitas vezes reduzindo sua expectativa de vida.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),
existem de 6 a 8 mil doenças raras no mundo; destas, apenas 4% contam com algum
tipo de tratamento, e 30% dos pacientes acabam morrendo antes dos cinco anos de
idade. No Brasil, estima-se que até 13 milhões de pessoas possam ter alguma
doença rara¹.
São muito comuns os casos em que o paciente
descobre uma doença rara depois de muitos anos, às vezes décadas, por vezes
recebendo diagnósticos equivocados. É o caso da Deise Zanin, presidente do
Instituto Atlas Biossocial, uma organização sem fins lucrativos que trabalha no
apoio às pessoas com doenças crônicas, graves e raras. O instituto oferece
suporte geral aos pacientes e suas famílias, disseminando informações de modo a
permitir o diagnóstico precoce e o conhecimento da sociedade em geral sobre
estas doenças.
Deise só teve conhecimento de que tinha uma
doença rara aos 20 anos de idade, quando foi diagnosticada com
mucopolissacaridose tipo 1.e iniciou um tratamento no Hospital de Clínicas em
Porto Alegre. Trata-se de uma doença genética, ainda sem cura, mas tratável
pela reposição periódica da enzima que não funciona nesses pacientes. Isso
impede o corpo de degradar substâncias que são normalmente produzidas, mas que,
na falta de uma degradação adequada, acabam se acumulando, o que gera
consequências em vários tecidos e órgãos.
“Eu levei 20 anos
para ter o diagnóstico, e foi suspeita de um oftalmologista, que me encaminhou
para o geneticista”, relata
Deise.
Na maioria das vezes, o paciente procura
médicos especialistas, faz uma série de exames, mas o diagnóstico final demora
de 4 a 5 anos em média. Ainda assim, os desafios no tratamento são inúmeros, em
muitos casos levando à morte precoce do paciente.
“Os sintomas às vezes são muito graves, e sem o
diagnóstico correto haverá idas recorrentes à unidade de saúde, internações, os
pais vão precisar parar de trabalhar para cuidar da criança, deixando de
contribuir com a economia. Então é uma série de problemas relacionados que
podem ser evitados com mais informação”, completa Deise.
Desta forma, é recomendado que, à medida em
que a criança cresce, os pais atentem para a existência de diferenças em seu
desenvolvimento em comparação a outras crianças. Caso algo diferente seja
notado, um médico geneticista deve ser procurado, pois pode ser o caso de uma
doença rara.
Para Deise, falta conscientização sobre as
doenças raras. “O desconhecimento pela população e pelos próprios médicos, e a
falta de ações concretas pelo poder público, tudo isso é limitante e muito
triste para as famílias. Já ouvi relatos de famílias que alertaram seus médicos
pediatras sobre diferenças no desenvolvimento de seus filhos, mas foram ignorados.
E isso mudou muito pouco nos últimos anos”.
Mucopolissacaridoses
(MPS): tratamentos atuais não são 100% eficazes
As mucopolissacaridoses (MPS) são doenças
genéticas que fazem parte dos erros inatos do metabolismo. Nas MPS, a produção
de enzimas responsáveis pela degradação de alguns compostos é afetada, e o
progressivo acúmulo destes compostos no organismo do paciente provoca diversas
manifestações.
Entre as consequências das MPS, podem estar:
limitações articulares, perda auditiva, problemas respiratórios e cardíacos,
aumento do fígado e do baço e déficit neurológico.
A incidência das mucopolissacaridoses é de
cerca de 1 caso para cada 25 mil nascidos vivos. De acordo com a enzima que se
encontra deficiente, as mucopolissacaridoses podem ser classificadas em 11
tipos diferentes².
No Brasil, o mais prevalente é o tipo II,
conhecido como Síndrome de Hunter (causada pela deficiência da enzima iduronato
sulfatase) — um caso para cada 70 mil nascidos vivos, com uma média de 13 novos
casos ao ano detectados pela Rede MPS Brasil³.
Ocorrendo quase exclusivamente em pessoas do sexo masculino, a MPS II, sem o
tratamento adequado, pode levar à morte do paciente nas duas primeiras décadas
de vida.
Já a MPS tipo I é causada por uma
deficiência na enzima alfa-L-Iduronidase. Sua forma mais grave é conhecida como
Síndrome de Hurler e se manifesta logo nos primeiros meses de vida, na forma de
anomalias ósseas, aumento do fígado e do baço, e atraso no desenvolvimento
psicomotor do paciente. O aumento do volume da língua, a perda auditiva e a
opacidade da córnea também são sintomas frequentes, assim como problemas
respiratórios e cardíacos. Por isso, após o diagnóstico, os pacientes precisam
de uma rede de apoio multidisciplinar.
As MPS I e II, assim como outras
enfermidades, poderiam ser facilmente detectadas por meio da expansão do Teste
do Pezinho, que foi proposta para ser implementada no SUS pela Lei 14.154
publicada em 27/05/2021⁴.
A realização deste teste é de extrema
importância em todas as crianças, uma vez que o diagnóstico precoce e o
tratamento adequado podem mudar a história dos pacientes com esta doença.
Porém, apesar da promulgação da lei, os testes ainda não são implementados.
Para a presidente do instituto, este é um problema sério: “A lei do
teste do pezinho ampliado foi sancionada, mas ainda não saiu do papel. Queremos
que ela saia do papel e vire realidade. E que os profissionais de saúde lembrem
das doenças raras no seu dia a dia”, complementa Deise.
E mesmo com a detecção precoce da doença, os
tratamentos disponíveis atualmente não são completamente eficazes, uma vez que
não conseguem ultrapassar a barreira hematoencefálica (BHE), uma membrana
permeável que regula a passagem de moléculas para os neurônios. Desta forma, o
tratamento não consegue conter os efeitos neurológicos da doença, que podem
incluir: hiperatividade, convulsões, epilepsia, perda da audição, ansiedade,
depressão, declínio cognitivo e até demência precoce, entre outros⁵.
“Nossa
esperança é de ter acesso a um novo medicamento que trate esses problemas, e
poder usá-lo”, relata a presidente do instituto.
Novos
medicamentos podem revolucionar o tratamento das MPS I e II
Desde 2018, a JCR Farmacêutica — empresa de
origem japonesa fundada em 1975 e focada no tratamento de doenças raras —
desenvolve estudos clínicos de um novo medicamento para a MPS I e II no Brasil.
O tratamento é aplicado por via intravenosa nos pacientes e, de forma pioneira
nessas doenças, consegue atravessar a barreira hematoencefálica, chegando ao
sistema nervoso central, além de atuar também em todo o corpo. No Japão, o
medicamento indicado para pacientes com MPS II já está disponível há quase dois
anos, e mais de 70 pacientes já usufruem de seus benefícios.
Vanessa Tubel, CEO da JCR no Brasil, explica
que esta é uma verdadeira revolução para os pacientes, que em pouco tempo
começaram a apresentar melhoras nos sintomas e, em alguns casos, até mesmo a
reversão de alguns aspectos do quadro clínico.
“A MPS não tem cura, mas com tratamento adequado e
precoce é possível controlar a doença e aumentar a expectativa e a qualidade de
vida do paciente e dos familiares”, explica Vanessa.
O estudo é liderado pelo geneticista e
professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Dr. Roberto Giugliani, tendo sido também realizado na Universidade Federal
de São Paulo, com coordenação da Dra. Ana Maria Martins, geneticista e
professora da Unifesp.
“Novas
tecnologias associadas a enzimas capazes de cruzar a barreira hematoencefálica
(sangue-cérebro) permitem tratar as manifestações neurológicas a partir de
tratamento administrado na veia. A combinação dessas novas tecnologias de
tratamento com o diagnóstico precoce, idealmente através do teste do pezinho,
trará um ganho significativo na qualidade de vida dos pacientes com MPS”,
explica Dr. Roberto Giugliani ⁶.
Para Deise Zanin, o tempo é mais um obstáculo para os pacientes de
doenças raras: “Enquanto a aprovação de novos tratamentos no
Brasil não acontece, dezenas de pacientes continuam sem acesso a um medicamento
eficaz para todos os efeitos das MPS, físicos e neurológicos, sendo que em
outra parte do mundo a nova tecnologia já está disponível. Isso afeta
seriamente a qualidade de vida do paciente de MPS, que não pode esperar, uma
vez que a doença pode tirar sua vida antes do acesso ao medicamento mais
moderno disponível no mundo.”
JCR Farmacêutica
Referências
1) Casa Hunter. Disponível em https://casahunter.org.br/o-que-e-doenca-rara/
2) Agência Fio Cruz https://agencia.fiocruz.br/pesquisa-sobre-genetica-medica-e-pauta-de-revista-cientifica e Estudo
‘Updated birth prevalence and relative frequency of mucopolysaccharidoses
across Brazilian regions’. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47572021000100103&script=sci_arttext
3) Artigo ‘Updated birth prevalence and relative
frequency of mucopolysaccharidoses across Brazilian regions’. Disponível
em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47572021000100103&script=sci_arttext
4) Lei do Teste do Pezinho ampliado
5) Reunião-satélite do XIII Simpósio
Internacional da Sociedade Portuguesa de Doenças Metabólicas - DOENÇA
NEUROLÓGICA NAS MUCOPOLISSACARIDOSES (MPS). Disponível em: https://www.spdm.org.pt/media/1530/maq06-tripticoa4-biomarin-paginas-individuais.pdf
6) Estudo ‘Updated birth prevalence and relative frequency of
mucopolysaccharidoses across Brazilian regions’. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47572021000100103&script=sci_arttext
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