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domingo, 4 de dezembro de 2022

Otimismo Tóxico: Empreendimento coletivo para o adoecimento


A sociedade moderna exige constante vigilância na cadeia produtiva, somada a estabelecida e devotada manutenção da formação individual. Afinal, o mercado exige processos mais eficientes e profissionais cada vez mais qualificados, que precisam apresentar e desenvolver não apenas conhecimentos técnicos, mas diversas qualidades pessoais (soft skills), ou seja, comunicação eficaz, empatia, colaboração, organização, flexibilidade, resiliência, trabalhar sob pressão, entre outras. Tudo isso, em condições de urgência, por conta da velocidade com que a sociedade tem alcançado os avanços tecnológicos, produtivos e farmacêuticos. 

Devido a esta dinâmica, a sociedade contemporânea configurou-se a partir de movimentos de extrema racionalidade em relação ao mundo do trabalho. Isso conduziu a contradições da vida moderna, pois se espera que o trabalhador dê conta de todas as expectativas exigidas, como por exemplo, as diversas soft skills, capacitações técnicas e dedicação ao trabalho, sem a possibilidade de adoecimento, tornando-o um programado portador de habilidades e competências, numa perspectiva individualista. 

A produção de sentido, em relação a viver uma vida feliz, prazerosa e com boas vibrações (Mclnerny), vista como um empreendimento coletivo, apesar da individualidade esperada, é postulada e reforçada pela cultura racional do mundo do trabalho. Esses fenômenos modulam um complexo industrial otimista, ou melhor, um otimismo tóxico exigido a todos. 

Sendo assim, como bem coloca Nora McInerny em entrevista à jornalista Jéssica DuLong do Brooklyn, Nova York, publicada pela CNN, há um mundo estranho sendo desenhado. É possível notar que grande parte das pessoas que conhecemos busca seu minuto de fama nos espaços das redes sociais. Essa tentativa visa alcançar o estrelato com produções de seu próprio reality show, transformando o espaço privado em público, uma mercadoria a ser vendida e consumida por estranhos, alienada a um mundo de perfeição e felicidade, que só existem no curto período de um clic da câmera fotográfica ou do Rec de uma filmadora. 

Temos nisso a expectativa de que a felicidade se estenda, seja plena e ininterrupta, com efeito estendido àquela existência, com árdua vigilância para que seja ignorado o doloroso, o desprazer, a tristeza, a falta, etc. Somos exigidos a buscar ser, cada vez mais, os melhores em tudo o que fazemos, a não mostrarmos nossas tristezas, a estarmos prontos a vender um sorriso e uma vida perfeita, afinal, é esperado que você dê 110% em tudo, uma verdadeira perfeição, programado como uma máquina. Tudo isso para quê? Para que venhamos a corresponder alinhados com os diversos mecanismos de controle, que prestam vigilância constante. 

As leis que regem a vida atualmente, em suas diversas dimensões, estão vinculadas a manutenção da contínua “normalidade”, cujo objetivo é manter a máquina produtiva girando, sem a possibilidade da interrupção deste universo produtivo. Se tomamos como exemplo a questão do luto e usarmos o DSM --V (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mantais, referência para diagnósticos de doenças mentais), o tempo da vivência para o enlutado está diminuto. As ligações que fazemos ao longo de nossa existência são responsáveis pela significância do viver, porquanto é comum as pessoas dizerem a alguém que perdeu um ente querido que “a vida perdeu o sentido”. Para o DSM-V, viver o luto, de acordo com seus critérios, deve ocorrer no mínimo por duas semanas, antes de ser posto como transtorno depressivo maior e precisar de medicação. Notadamente pontuado por especialistas, raramente uma pessoa supera tal condição, ou mesmo, procura ajuda em tão pouco tempo. 

Volta-se aqui, portanto, ao dilema de que se não encontrarmos a resposta dentro de nós para uma autorregulagem, estaremos distantes do sentimento de otimismo, alegria e positividade, tão cobrado nas mais diversas formas de expressões sociais, podendo caracterizar um defeito pessoal. Contudo, se nesta busca de autoaperfeiçoamento houver dificuldades, caracterizando a representatividade deste defeito, podemos recorrer aos avanços farmacológicos e, assim, retomarmos nossa suposta vida perfeccionista/otimista. 

A vida moderna, com suas exigências, cobra o afastamento de sentirmos e demonstrarmos esses sentimentos honestamente, decretando a necessidade do constante otimismo, positivismo e perfeição, seja ela na vida real ou virtual. Tudo isso impede o simples ato de estar vivo na sua plenitude, pois deveria ser possível apresentar-se de forma contraditória, imperfeita ou até mesmo infeliz, uma vez que, isso também nos constitui como seres humanos. Não poder viver as imperfeições ou escondê-las, dificulta a constituição de nossa própria identidade, de sermos reais e não ficcionais, mas principalmente, de nos afastarmos do adoecimento coletivo, chamado otimismo tóxico. Afinal, de acordo com Mclnerny (2022) a “vida é frágil e nosso ritmo neste mundo moderno é insustentável”.

 

Marcelo Alves dos Santos - psicólogo clínico e docente de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


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