Há uma corrida mundial para o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19, na qual os competidores são a Rússia, os EUA, a China e o Reino Unido.
A China aposta em uma vacina composta de fragmentos
de vírus, método bastante conhecido, que tem como ponto forte a existência de
décadas de experiência e, como desvantagem, a necessidade de produzir o vírus
vivo em laboratórios de segurança máxima e em quantidades colossais. Nunca
tivemos que produzir tantas vacinas em tão pouco tempo. Os insumos necessários
precisarão ser produzidos em uma escala inédita, os recursos humanos
necessários precisarão ser recrutados e treinados, instalações precisarão ser
construídas. Rússia, EUA e Reino Unido têm outra estratégia: apostam na
introdução de material genético com a receita das proteínas virais no corpo
humano e as fábricas celulares se encarregam de produzir a vacina. É como se
uma confeitaria muito atarefada parasse de vender bolos aos clientes e passasse
a mandar cópias das receitas para que cada um fizesse seu próprio bolo em casa.
A vantagem é que a produção e distribuição são rápidas. A desvantagem é que
isso nunca foi feito nessas condições e nessa escala: estamos em território
desconhecido.
Além das questões de escala, temos a questão do
prazo. A vacina contra a caxumba foi a de desenvolvimento mais rápido até hoje.
O médico americano Maurice Hilleman liderou a pesquisa, que começou em 1963 e
terminou em 1967. Era outra doença, outra época, outros recursos e uma ética de
pesquisa diferente da atual. Hoje, nos propomos a desenvolver a vacina contra o
coronavírus em menos de um ano. O que pode dar errado? Menos tempo significa
queimar algumas etapas. Por exemplo: a vacina seria eficaz por dois anos? Não
podemos responder essa pergunta acompanhando pacientes por apenas um ano. Se
houver efeitos colaterais tardios também não saberemos até que os pacientes tenham
sido acompanhados por um período razoável de tempo. Imagine que a vacina cause
problemas sérios em 1 em cada 10.000 pessoas. É pouco, pouquíssimo até. Mas se
a intenção é vacinar um bilhão de pessoas, 100.000 sofreriam desses efeitos
colaterais.
Em 1976 houve um surto de influenza em um quartel na Filadélfia, conhecido como Fort Dix. Um soldado morreu e 200 ficaram gravemente doentes. O presidente dos EUA, na época, iniciou uma campanha de vacinação em massa que atingiu 40 milhões de pessoas. Nos meses seguintes, 94 desenvolveram uma doença que afeta os nervos e leva à paralisia. Essa doença é chamada de síndrome de Guillain Barré e está relacionada à vacina: os casos em vacinados foram 4 vezes mais frequentes do que na população geral. Alguns casos seriam aceitáveis se a vacina tivesse salvado milhares de vidas. Não foi o que aconteceu: naquele ano, a quarentena foi muito eficiente e o vírus nunca saiu do quartel. Não houve casos além dos 200 iniciais. Foi um vexame histórico que abala a confiança dos americanos nas vacinas até hoje: os americanos têm percentuais de cobertura vacinal muito inferiores aos obtidos no Brasil e em países europeus.
Se em 1976 o vírus ficou preso no quartel, hoje
vivemos o oposto. Até outubro de 2020, o novo coronavírus já atingiu 40 milhões
de pessoas no mundo inteiro, matando 1 milhão delas. Os 90 casos de paralisia
seriam um pequeno preço a se pagar no contexto atual. Acompanhe essa analogia:
os acidentes de trânsito matam 1 milhão de pessoas ao ano no mundo todo.
Sabemos que a direção imprudente e a alta velocidade aumentam o risco de
acidentes e, por isso, dirigir a 100 quilômetros por hora furando sinais
vermelhos é proibido. Mas quando uma pessoa sofre um infarto, uma ambulância
vem para transportar esse paciente ao hospital, ela trafega em alta velocidade
e desrespeita todas as leis de trânsito. Fazem isso porque o risco aumentado de
acidentes no trajeto é compensado pelo benefício de chegar antes ao hospital. A
imprudência é permitida pelo benefício que pode trazer. Em 2020, somos todos
nós nessa ambulância. Sabemos que correr com vacina tem riscos, mas precisamos
chegar rápido ao hospital.
Marcelo Abreu Ducroquet - infectologista e professor do curso de Medicina da Universidade Positivo.
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