Em 2014, pela primeira vez, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) divulgou dados acerca da situação prisional brasileira com recorte de gênero, o que significa que, pela primeira vez, o Brasil pode conhecer a realidade – ao menos, a estatística - das cerca de 37.000 mulheres encarceradas. O relatório oficial aponta o crescimento assombroso do aprisionamento feminino: em 15 anos, a população penitenciária feminina cresceu 567%, enquanto a taxa de crescimento da masculina ficou em 220%, menos da metade. As mulheres representam 8% das mais de 600.000 pessoas em situação de privação de liberdade em nosso país. Parece pouco, mas esse índice é superior à média mundial e coloca o Brasil em 5º lugar dentre os países com maiores taxas de encarceramento feminino, portanto, são muitas mulheres e é grande o silêncio cúmplice sobre elas.
Ainda com aporte nos dados do Depen, é possível traçar um perfil dessas mulheres esquecidas: 58% das mulheres estão presas por tráfico de drogas, um crime sem violência direta (diferentemente do ocorre com alguns crimes patrimoniais, por exemplo), tendo sido condenadas a penas relativamente baixas - até 4 anos (19%) e entre 4 e 8 anos (35%). Entretanto, a despeito do que dispõe o art. 33, §2º do CP, a regra é seu cumprimento em regime fechado (45%). 68% dessas mulheres são negras e 80% são mães. Ademais, dados da América Latina apontam que as mulheres presas, em geral, eram trabalhadoras da economia informal (sem carteira assinada), em postos de trabalho precarizados (sem garantia de direitos trabalhistas e previdenciários). A despeito dessa condição de absoluta insegurança econômico-financeira, essas mulheres são, em sua maioria, chefes de família e responsáveis pelo sustento dos filhos, por isso, quando encarceradas, além de serem abandonas por seus companheiros, são forçosamente afastadas deles, que passam a ser criados pelos avós, quando não encaminhados para adoção.
Nesse sentido, vislumbra-se que o massivo encarceramento feminino, além de violar os direitos humanos dessas mulheres, ao submetê-las a um sistema prisional superlotado, insalubre, que não respeita suas necessidades biológicas de mulher, e marcado por uma realidade de torturas e maus-tratos, já tantas vezes reconhecidas por Organismos Internacionais – inclusive, no recente parecer do Relator Especial contra a tortura da ONU – viola também os direitos humanos das crianças e adolescentes filhos e filhas dessas mulheres, privando-os do vínculo materno e rompendo laços de afetividade que podem trazer consequências irreparáveis, dentre as quais, a perpetuação de ciclos de pobreza e exclusão em que eles, normalmente, já se encontram inseridos.
Diante desse quadro, torna-se imperioso refletir acerca das políticas criminais adotadas pelo Brasil em relação à população prisional feminina. Um dos caminhos para se repensar essa realidade passa pela discussão acerca da concessão do indulto, um instituto jurídico-penal que assegura o perdão da pena, com sua consequente extinção, tendo em vista o cumprimento de alguns requisitos, com base no art. 84, XII, d da CF. Outra possibilidade seria a aplicação do regime domiciliar, autorizado pela própria Lei de Execuções Penais (Lei 7210/84), em seu artigo 117, III, para mulheres que têm filhos menores. O impedimento concreto para sua aplicação, porém, é a dificuldade de progressão de regime prisional das encarceradas por tráfico de drogas, considerado um crime equiparado aos hediondos. Nesse sentido, o crescimento vertiginoso do encarceramento feminino no Brasil também pode ser explicado pela baixíssima taxa de beneficiamento das apenadas: como o tráfico também não foi alcançado pelos mais recentes indultos natalinos, é irrisório o número de mulheres por ele beneficiadas. Apenas para se ter uma ideia, em São Paulo, em 2014, apenas 65 mulheres foram contempladas com o indulto, número irrisório quando comparado com os 2.335 homens beneficiados, e esse número é ainda menor nos anos anteriores.
Atento a essa problemática, o Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”, que atua desde 2001, conjuntamente com mais de 100 entidades que subscrevem a nota técnica enviada a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e a Presidenta, propõe o Indulto do Dia da Mulher, pleiteando que a elaboração do decreto proceda a extensão do indulto às mulheres encarceradas, levando em conta 2 pontos principais: (1) Que se contemple, dentre as hipóteses, as mulheres condenadas por tráfico de entorpecentes que tenham pena de até 05 anos; (2) Que, no caso de mulheres com filhos menores de 18 anos, leve-se em conta um período menor de pena cumprida para sua concessão, priorizando-se a relação dos filhos com as mães e poupando crianças e adolescentes o máximo possível das consequências nefastas da prisionalização de suas mães, notadamente os danos emocionais decorrentes do afastamento.
A proposta se alinha à postura de outros países que têm reconhecido a falência da política de “guerra às drogas”, passando a adotar medidas alternativas, objetivando reduzir as alarmantes taxas de encarceramento dela resultantes. O Presidente dos EUA, Barack Obama, colocou em liberdade cerca de 6.000 pessoas que respondiam por tráfico entre outubro e novembro de 2015. O Equador adotou, em 2008, indulto que incluía pessoas presas pela primeira vez por transporte de drogas, com até 2 kg de substância e que já tivessem cumprido 10% de sua sentença. A Costa Rica, por sua vez, incluiu em lei o critério de gênero na análise de proporcionalidade das penas e de atenuantes causados pela vulnerabilidade das mulheres, passando a aplicar redutores de penas em função da extrema pobreza, chefia de lar, responsabilidade sobre crianças e adolescentes, idosos ou pessoas com deficiência – uma iniciativa reconhecida pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) como boa prática a ser implementada por outros países.
No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas, equiparação de salários com os homens, e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. Por conta da manifestação, as mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas. Esse episódio que sustenta, hoje, a existência do “Dia Internacional da Mulher” exemplifica magistralmente que as conquistas de direitos pelas mulheres são produtos de intensas lutas sociais, e não meros desdobramentos de um processo civilizatório modernizante.
Agora, neste 8 de março de 2016, o que as mais de 37.000 mulheres aprisionadas e esquecidas nos presídios brasileiros esperam e tem direito é que superemos o ranço punitivista de uma sociedade alimentada diariamente com medo e ousemos apoiar o perdão suas penas, reconhecendo a falência da política de “guerra às drogas”, que apenas tem produzido a sistemática violação dos direitos humanos das pessoas em maior situação de vulnerabilidade social. Por elas, por seus filhos e por nós, para que seja possível acreditar em nossa humanidade e em sua capacidade de (re)inventar mundos de vida.
Júlia Lenzi Silva - mestra em direito pela UNESP e professora de direitos
humanos na FESL-SP
Taylisi de Souza Corrêa Leite - doutoranda em
direito pelo Mackenzie e professora de direito penal na FESL-SP
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