Parece impossível compreender como alguém pode
cometer assassinato em massa, principalmente quando crianças e adolescentes
estão envolvidos. Nossas perguntas são sempre as mesmas, como pode fazer isso,
qual a motivação e como evitar?
Esse não
saber sobre o outro, sua forma de pensar e agir nos incomoda, ao mesmo tempo
que nos faz buscar justificativas sempre distantes do nosso modo de viver e
agir para atribuir a atos criminosos. O criminoso é assim visto como um
“louco”, irracional ou um ser oposto a mim, que não pensa como eu, não tem a
mesma ideologia, não segue os mesmos princípios ou tem desvios.
A
psicanálise pode ser um acalanto em certas explicações, mas pode ser também
dura, pois implica o sujeito. Para a psicanálise não adianta nada jogar a culpa
no mundo e não enxergar aquilo que é próprio do sujeito nesta produção social.
De certo,
sabemos que a adolescência sempre se encarregou das transgressões sociais e das
transgressões das regras familiares. O adolescente, na sua formação, desconstrói
os limites impostos para construir um ser em si, em outras palavras, vai se
tornando sujeito na medida em que interroga valores e regras – e por vezes
transgride. Essa transgressão não significa crime. Contudo, para haver
possibilidade de transgressão é necessário lei, limitação e regras bem
estabelecidas.
A
transgressão é um mecanismo onde o sujeito revela algo de si que antes estava
contida nos limiares familiares ou extra-familiares. A transgressão que
contribui para a formação do sujeito está na desobediência à normas familiares,
na desobediência às regras escolares. Está na mentira que o adolescente conta
para os pais ou quando cabula aula. Está no momento que o adolescente ‘cola’ na
prova ou levanta a bermuda da escola para transformar em um shorts curto.
Por isso,
seria impossível pensar, via psicanálise, os atos criminosos, sem pensar na
construção do sujeito atual. Isto não é uma forma de justificar de atos, mas a
constatação de que não é “do nada” que se comete certos crimes.
Enquanto
sujeitos, somos produtos e produtores da sociedade, portanto, quando falamos da
sociedade, estamos apenas dizendo de um reflexo dos sujeitos que a constroem. E
nossa sociedade é percebida hoje como muito permissiva. Um lugar onde o
exercício do direito irrestrito e da satisfação deve ser atuado a qualquer
custo. Não satisfazer as vontades vira motivo de destruição de si e do outro.
Freud,
brilhantemente nos ensinou que somos seres pulsionais – energia que une
instinto e afeto – e é isso que nos diferenciamos dos outros animais. Nossas
pulsões nos fazem vida, movimento, mas também podem ser destrutivas. E isso
significa dizer que viver somente pelas satisfações pulsionais seria
impossível, pois seríamos selvagens.
O homem
primitivo saiu daquela condição porque exerceu a repressão e organização
pulsional, possibilitando a construção da civilização. É no momento em que
reconhecemos que “nem tudo eu posso” e que “há outros com sentimentos e
pensamentos diferentes de mim”, que podemos exercer a sociabilidade, fazer civilização.
Direcionar
a pulsão para fazer exercício de convivência social é um dos temas fundamentais
na teoria freudiana. Sem essa contenção, essa limitação (que participa da
construção da base do superego) não conseguiríamos viver em sociedade e não
existiria cultura.
Da mesma
forma que, quando a lei familiar, as regras, as limitações e repressões nos
indicam: “você não é tudo e não pode tudo”, temos a oferta do desejar. Pode-se
desejar e construir criativamente sobre esses desejos.
Na nossa
constituição, os caminhos pulsionais delimitados vão contribuir para que
possamos tentar dizer quem somos ou como gostaríamos de ser. Por isso, abrimos
mão de satisfações imediatas para construções e satisfações mais bem
elaboradas.
Atualmente,
o que parece é atuação do princípio do prazer, onde a descarga pulsional direta
não carrega em si nada de criatividade, nem nenhuma sublimação. É a satisfação
pela satisfação. O indivíduo quer, ele faz. Acredita no direito de fazer o que
quer, pois tudo lhe é permitido numa sociedade individualista.
Infelizmente,
o que vemos é a negação da limitação e do direcionamento como forma de
convivência social e mais, como possibilidade de laços mais efetivos e
afetivos, e como construção de criatividade.
Somos um
conglomerado de pessoas – individualistas – que pouco se importa com os laços
sociais, pois estes já não fazem eco na formação. Nega-se o outro como nega-se
a sociedade, pois o que importa é a satisfação individual. O indivíduo enquanto
ser único se fortalece, enquanto o sujeito, enquanto ser da falta e social
desaparece.
Mas nossa
cultura não propaga somente o individualismo, também amplia a necessidade do
espetáculo como forma de ser e existir na sociedade. E com essa mistura nasce
um sujeito que se guia pela satisfação pessoal, anulando ou culpando o mundo
pelas suas não conquistas e espetaculariza seus pensamentos e ações.
Dessa
junção – individualismo e espetacularização – temos a fórmula de como o sujeito
se relaciona consigo e com o outro. Não é incomum as pessoas reclamarem dos
outros porque esses “outros” só fazem o que querem, desrespeitam, não se
responsabilizam, sem perceber que fazem o mesmo. Por outro lado, cada vez mais
pessoas têm a necessidade de tudo mostrar ao público: o cafezinho, o almoço, a
roupa nova, o carro, a viagem maravilhosa. Isso, contribui para a atual
confusão público/ privado e para o entendimento de uma pseudo felicidade e
superioridade que vive aquele “eu” que tudo compartilha.
Mas o
adolescente de hoje é infeliz! É infeliz porque acredita que tudo pode, pois
lhe será dado. É infeliz porque não tem a possibilidade de desejar e ser
criativo. É infeliz porque não tem a chance de boas transgressões. Há algo que
o adolescente de hoje não sustenta. Estruturalmente não sustenta - não sustenta
o que se é e nem sua relação com o outro.
Enquanto,
as leis e as regras forem vistas como inimigas da constituição do sujeito,
enquanto o discurso do “tudo eu posso” se sobrepor ao “olhar o outro” e
enquanto os prazeres tiverem o “dever” de serem satisfeitos negando a realidade
e a sociedade, continuaremos a assistir atuações pulsionais em forma de
comportamento social, seja na agressividade da violência, na luxúria do sexo
fácil e liberto, na negação do outro e na supremacia de um “eu” vazio.
Elizandra
Souza - Psicanalista
Presidente do Sinpesp