Como a rotina acelerada, a cobrança por desempenho
e a falta de tempo livre estão afetando o bem-estar emocional das crianças
Vivemos numa era em que até o silêncio parece urgente. A pressa tomou conta da rotina, a comparação virou hábito e a cobrança se disfarça de incentivo. Nesse cenário, as crianças — que deveriam estar protegidas do ritmo insano do mundo adulto — estão cada vez mais envolvidas por ele. A infância ansiosa é o retrato de uma sociedade que perdeu a pausa.
Nos últimos anos, o número de crianças diagnosticadas com ansiedade vem crescendo de forma preocupante. Dados do Ministério da Saúde apontam que os atendimentos por transtornos de ansiedade em crianças de 10 a 14 anos aumentaram 2.500% entre 2014 e 2024. Já o Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento (INPD) revelou que a ansiedade infantil cresceu 27% nos últimos cinco anos, manifestando-se antes mesmo dos 10 anos de idade.
A psicóloga clínica Patrícia Penteado, orientadora da Escola do Futuro Brasil, explica que “a criança ansiosa não é apenas uma miniatura de adulto sofrendo — ela sofre de um descompasso sensorial e emocional que a sobrecarrega”. Segundo ela, a ansiedade infantil está mais ligada ao contexto em que a criança está inserida do que a uma fragilidade individual. “Vivemos em uma cultura de hiperestimulação e performance. E quando a criança absorve esse ambiente, ela passa a acreditar que precisa ser perfeita — o que, contraditoriamente, sabota seu desempenho”, alerta.
A longo prazo, lembra Penteado, essa pressão
excessiva pode levar ao perfeccionismo doentio, à exaustão mental
e até a transtornos de ansiedade e depressão, porque a criança sente que
nunca é boa o suficiente para atender às expectativas externas.
Raízes invisíveis: o que causa tanta ansiedade nas crianças
Quando olhamos com calma, percebemos que a ansiedade infantil tem raízes profundas — e muitas delas estão em atitudes bem-intencionadas dos adultos. A rotina lotada, a expectativa de sucesso precoce, o contato constante com telas e a falta de tempo livre criam uma infância que mais parece um cronograma corporativo. “O excesso de atividades programadas, a chamada ‘agenda de CEO’, rouba esse tempo essencial de processamento emocional. A criança vive em modo de ‘fazer’ e ‘cumprir’, sem espaço para simplesmente ‘ser’”, explica a psicóloga.
Essa falta de pausa impede o amadurecimento emocional. “Se o adulto planeja cada minuto, a criança não aprende a escolher, a se auto-organizar e a se divertir por conta própria. Isso gera dependência, pouca autonomia e um vazio interno crescente”, completa. Segundo ela, quando a infância é vivida sem tempo de descanso, o corpo e a mente reagem. “As emoções e ansiedades se acumulam, e o resultado são sintomas físicos, como dores de cabeça, crises de choro, ou comportamentais, como irritabilidade e isolamento.”
É nesse contexto que o papel dos pais e educadores precisa mudar. Em vez de reforçar o resultado, é preciso valorizar o processo. “O foco deve mudar do produto final para o esforço e a persistência. Elogie o empenho, não apenas o sucesso. Dizer ‘Parabéns por todo o tempo que você dedicou estudando’ é mais saudável do que ‘Parabéns pela nota 10’”, orienta Penteado.
Ela destaca ainda a importância de ensinar o valor do erro: “A falha é parte normal e essencial do aprendizado. Os pais devem mostrar que eles mesmos erram e aprendem. A pergunta certa é ‘O que podemos aprender com isso?’, não ‘Por que você errou?’”.
Outro ponto que a especialista ressalta é a
importância do tempo de lazer. “Costumo dizer aos pais que o ócio é
produtivo. O tempo livre é crucial para a saúde mental e a descompressão
emocional. Sem ele, a criança não processa as experiências e fica em alerta o
tempo todo.”
Brincar é resistência: o poder da imaginação na saúde emocional das crianças
Enquanto muitos adultos se preocupam em preencher cada minuto das crianças com cursos, esportes ou reforços escolares, esquecem que a brincadeira livre — aquela sem regras, sem roteiro e sem objetivo — é uma ferramenta essencial para o desenvolvimento emocional.
“A brincadeira livre é a principal forma de autoterapia da criança. Quando ela negocia regras com os amigos, resolve conflitos e lida com frustrações, está treinando a resiliência”, explica a psicóloga. Brincar de forma espontânea também estimula a criatividade, a empatia e a capacidade de resolver problemas — competências que farão toda diferença na vida adulta.
No fundo, o que está em jogo é o direito de viver o tempo da infância. Um tempo de descoberta, curiosidade e imaginação, que não precisa ser “otimizado” ou “produtivo”. Um tempo em que o vazio tem valor e o silêncio ensina.
Penteado resume bem essa ideia: “A criança precisa
criar, inventar e imaginar. Isso não é perda de tempo — é o alicerce da saúde
mental. Quando a infância vira uma corrida, o adulto do futuro carrega a
exaustão do que não viveu”.
Cuidar das crianças hoje é proteger os adultos de amanhã
A infância ansiosa é um espelho do mundo que construímos. Ao preencher cada minuto, tiramos das crianças a chance de se encontrarem consigo mesmas. Ao medir o valor pelo desempenho, ensinamos que o amor é condicional. Ao ignorar os sinais, normalizamos o sofrimento.
Mas ainda há tempo para mudar o rumo — com escuta, afeto e presença. Pais e professores não precisam ter todas as respostas; precisam estar disponíveis para as perguntas.
Talvez o maior ato de coragem hoje seja ensinar uma
criança a desacelerar. E, no meio de tanta correria, lembrar que o que
cura não é o excesso de estímulos — é o encontro genuíno entre um adulto que
acolhe e uma criança que finalmente pode respirar.
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