A
recente edição da Portaria nº 28/2025 do Ministério do Turismo trouxe à tona um
tema aparentemente banal, mas que guarda uma densidade jurídica surpreendente:
o tempo da hospedagem. Check-in e check-out sempre foram tratados como práticas
quase folclóricas, ajustadas no balcão, em letras miúdas dos contratos de
adesão ou, pior, relegadas à convenção tácita de cada estabelecimento. Agora,
com a nova normativa, surge a tentativa de se estabelecer uma padronização
mínima, que traga transparência para consumidores e segurança jurídica para os
prestadores de serviço. Mas, como todo texto normativo, a questão não está
apenas no que ele diz, mas também no que ele silencia.
O
núcleo da Portaria reside em afirmar, no artigo 1º, §1º, que a diária
corresponde ao período de vinte e quatro horas, mas que, conforme o §3º do
mesmo artigo, até três dessas horas podem ser destinadas à arrumação,
higienização e limpeza da unidade habitacional, garantindo ao hóspede pelo
menos 21 horas de uso efetivo.
Em
outras palavras: o tempo da hospitalidade não é idêntico ao tempo do relógio. A
diária não se confunde com a posse física de um quarto, mas com uma prestação
complexa que inclui serviços acessórios. Aqui, o Direito Civil se encontra com
a hermenêutica do tempo: o que se contrata não é um espaço vazio, mas um feixe
de obrigações, uma temporalidade pactuada. É como se a lei dissesse: o quarto é
seu, mas o tempo é nosso.
Essa
aparente contradição - uma diária de 24 horas que comporta apenas 21 horas de
fruição - revela algo mais profundo sobre a natureza jurídica do contrato de
hospedagem. Não estamos diante de uma locação simples, tampouco de um comodato
temporário. Trata-se de uma prestação de serviços complexa, na qual o tempo de
uso não se mede apenas pela presença física do hóspede, mas pela
disponibilização de uma estrutura que precisa ser constantemente renovada.
A
governança hoteleira, frequentemente invisibilizada na experiência do
consumidor, é parte constitutiva do próprio serviço. O quarto limpo não é um
luxo, mas condição de possibilidade da hospitalidade.
E
aqui reside o primeiro nó hermenêutico da Portaria: ao estabelecer que “até
três horas” podem ser utilizadas para preparação, a norma cria uma janela de
discricionariedade que pode tanto proteger quanto vulnerabilizar o consumidor.
Protege porque impede abusos como check-ins às 18h e check-outs às 10h, prática
comum que reduzia a diária a meras 16 horas. Vulnerabiliza porque não
especifica critérios objetivos para essa subtração temporal.
Qual
o parâmetro para se definir se são necessárias uma, duas ou três horas? A
metragem do apartamento? A categoria do estabelecimento? A quantidade de
hóspedes anteriores? A complexidade dos serviços prestados? A norma silencia, e
o silêncio normativo, como sabemos, é terreno fértil para o arbítrio.
Poderia
o Ministério do Turismo ter sido mais preciso? Certamente. Deveria ter
estabelecido uma tabela de referência, correlacionando tipologia de unidade
habitacional com tempo razoável de higienização? Provavelmente. Mas preferiu a
fórmula genérica, delegando ao mercado — e, eventualmente, ao Judiciário — a
tarefa de preencher essa lacuna.
A
virtude da norma está em traduzir, de modo mais claro, aquilo que já estava na
Lei Geral do Turismo (Lei nº 11.771/2008) e, indiretamente, no Código de Defesa
do Consumidor. O artigo 1º, §5º, ao estabelecer que os meios de hospedagem
devem informar ao hóspede, no mínimo, os horários adotados de entrada e saída e
o tempo estimado para limpeza e organização da unidade habitacional, concretiza
na seara do turismo aquilo que os artigos 6º e 31 do CDC já previam: informação
adequada, ostensiva e leal.
O
consumidor, antes refém da assimetria informacional, agora tem um patamar
mínimo de previsibilidade. E os meios de hospedagem, por sua vez, conquistam um
parâmetro uniforme que reduz a insegurança e nivela a concorrência. Mais ainda:
o §6º do artigo 1º estende esse dever de informar também ao intermediário que
tenha atuado na comercialização dos serviços de hospedagem, o que é um avanço
significativo, embora tímido.
Mas
é preciso fazer uma pergunta incômoda: por que demorou tanto? Desde sempre, a
questão da duração da diária foi objeto de regulamentação. Em determinados
momentos, fixou-se o padrão de 24 horas; em outros, esse parâmetro foi
simplesmente excluído. A Deliberação Normativa nº 364/1996, em seu artigo 10,
já previa a diária de 24 horas, repetida pela DN nº 387/1998. Mas a DN nº
429/2002, ao aprovar o Regulamento Geral dos Meios de Hospedagem, retirou essa
referência, recolocando a questão em aberto. Esse vaivém regulatório não é mero
acaso: parece refletir, em grande medida, a força dos lobbies do setor, ora
pressionando pela fixação, ora pela flexibilização.
Tudo
isso, entretanto, tornou-se letra morta a partir de 2003, quando a criação do
Ministério do Turismo (Lei nº 10.683/2003) retirou da Embratur a competência
normativa, reservando-lhe apenas funções de promoção. O quadro foi
definitivamente consolidado com a promulgação da Lei nº 11.771/2008 (Lei Geral
do Turismo) e sua posterior regulamentação, que organizaram de forma sistêmica
a disciplina do setor. A LGT, contudo, tratou do tema apenas de modo genérico
em seu artigo 23, deixando espaço aberto para disputas interpretativas. Agora,
dezessete anos depois, a Portaria nº 28/2025 retoma a questão, em mais um
esforço de dar densidade jurídica a um problema que nunca se resolveu de
maneira definitiva.
Contudo,
mais flagrante que o conteúdo é a exclusão: as plataformas digitais de aluguel
por temporada — Airbnb, Booking e congêneres — permanecem fora da incidência da
Portaria. O resultado é a perpetuação de uma assimetria regulatória: enquanto
hotéis, pousadas e hostels se submetem a regras de higiene, transparência e
fiscalização, os imóveis alugados por aplicativos continuam na zona cinzenta da
informalidade, escapando à regulação estatal.
Essa
omissão não é acidental: reflete uma disputa de narrativas sobre o que é,
afinal, um “meio de hospedagem”. As plataformas vendem a ideia de neutralidade,
como se fossem meros “quadros de avisos digitais”. Mas, ao definir preços,
processar pagamentos e controlar políticas de cancelamento, elas estruturam
toda a relação contratual. Não são neutras, ainda que queiram parecer.
A
jurisprudência europeia e o Digital Services Act caminham nessa direção,
impondo responsabilidades. No Brasil, ainda se aceita a ficção jurídica
conveniente de que a plataforma não presta o serviço. O problema é que, ao
manter essa ficção, perpetua-se a desigualdade e se fragiliza a proteção do
consumidor.
O
ponto crucial, portanto, é compreender que estamos diante de mais do que um
ajuste burocrático: trata-se da juridicização da hospitalidade. O contrato de
hospedagem não pode ser reduzido a um jogo de horários arbitrários. Ele é,
antes de tudo, um pacto de confiança, em que o hóspede deposita no prestador a
expectativa de dignidade, previsibilidade e segurança.
A
Portaria nº 28/2025, ao normatizar o óbvio, revela que o óbvio precisa ser
dito, sob pena de se transformar em fonte inesgotável de litígios. Mas, como
lembra a hermenêutica gadameriana, não basta aplicar a letra da norma. É
preciso interpretar a hospitalidade como princípio jurídico.
Ela
não se resume a “dar teto” por 24 horas; envolve dignidade da experiência,
direito fundamental ao lazer (art. 6º da CF), higidez sanitária (extensão do
direito à saúde) e a ideia de turismo como política pública de desenvolvimento
(art. 180 da CF).
Nesse
contexto, surge a questão que temos discutido em obras publicadas ao longo dos
últimos 25 anos: pode o Direito do Turismo consolidar-se como ramo autônomo?
Autonomia não se decreta, conquista-se. E talvez ainda seja cedo. Mas normas
como a Portaria 28/2025 evidenciam que o Direito Civil e o CDC, isoladamente,
já não bastam para dar conta da complexidade do fenômeno turístico.
Se
o turismo pode ser improviso ou pode ser política de Estado, a Portaria nº
28/2025 parece dizer: “acabou a farra, vamos colocar o relógio para
despertar no horário certo”. É um gesto de racionalização que aponta para a
maturidade regulatória, ainda que tímida.
O setor não poderia continuar vivendo de “jeitinhos” normativos, tampouco de contratos escritos à mão no balcão da recepção. Mas a ironia é que a norma corre o risco de dormir no mesmo quarto das centenas de portarias já esquecidas, com check-out antecipado antes mesmo de entrar em vigor.
Fonte:
Rui Aurélio de Lacerda Badaró - advogado no Brasil e em Portugal. Vice-Presidente da Comissão de Direito do Turismo, Mídias e Entretenimento do Conselho Federal da OAB. Doutor em Direito Internacional pela UCSF
Marco Antonio Araujo Junior - advogado. Conselheiro Federal da OAB. Presidente da Comissão de Direito do Turismo, Mídias e Entretenimento do Conselho Federal da OAB. Doutorando em Direito pela PUCSP
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