Há violências que ferem o corpo e silenciam a alma — e nenhuma é tão corrosiva quanto aquela praticada por quem ocupa lugares de admiração e poder simbólico: professores, mentores, chefes, líderes religiosos. O abuso, sexual ou moral, aproveita-se do crédito social do agressor e da confiança da vítima. O resultado costuma ser um ciclo de silêncio, vergonha e descrença, com impactos psíquicos e profissionais profundos.
O Brasil construiu um arcabouço legal relevante para enfrentar esse problema. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) criou mecanismos para prevenir e punir a violência doméstica e familiar, reconhecendo cinco formas de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Ainda que voltada ao contexto doméstico, sua influência cultural é imensa e inspirou redes de proteção e medidas protetivas de urgência que salvaram vidas.
No plano internacional, a Convenção de Belém do Pará (1994), ratificada pelo Brasil, impôs aos Estados o dever de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, reforçando o direito de viver livre de violência em todos os espaços — inclusive no trabalho e em ambientes educacionais. É um marco civilizatório que ancora políticas públicas e decisões judiciais.
O ordenamento também avançou na tipificação de condutas frequentes quando o agressor detém ascendência hierárquica. O assédio sexual é crime desde 2001 (art. 216-A do Código Penal), justamente quando alguém se prevalece da posição de superior para obter vantagem sexual. Em 2018, a Lei 13.718 tipificou a importunação sexual (art. 215-A), respondendo a situações de atos libidinosos sem consentimento, comuns em transportes e ambientes coletivos. Em 2021, a Lei 14.132 criminalizou o stalking (art. 147-A), reconhecendo a perseguição reiterada — digital ou presencial — como violência que restringe a liberdade da vítima. E, também em 2021, a Lei 14.188 incluiu no Código Penal a violência psicológica contra a mulher, além de institucionalizar o programa Sinal Vermelho. Esses instrumentos ampliam a proteção para além da agressão física, alcançando táticas de controle e intimidação muito comuns em relações assimétricas.
Casos emblemáticos mostram a dinâmica do abuso praticado por figuras reverenciadas. O ex-médico Roger Abdelmassih foi condenado a penas que somam mais de cem anos por estuprar pacientes — mulheres que o buscavam em situação de extrema vulnerabilidade. A gravidade do caso expôs como prestígio profissional pode ser instrumentalizado para calar denúncias por décadas.
No campo religioso, o médium João de Deus acumulou sucessivas condenações por estupro e violações sexuais cometidas durante atendimentos espirituais. A narrativa pública de “cura” e “fé” funcionou como escudo simbólico que retardou o reconhecimento das violências, até que a avalanche de relatos rompeu o silêncio.
Globalmente, o caso Harvey Weinstein catalisou o #MeToo e mostrou que o abuso prospera em ambientes em que carreiras dependem do aval de homens poderosos. Mesmo com reviravoltas processuais em Nova York, o ex-produtor carrega condenação de 16 anos em Los Angeles — um lembrete de que a responsabilização é possível, ainda que longa e complexa.
Os números reforçam a dimensão estrutural do problema. Pesquisas nacionais indicam que mais da metade da população presenciou ou ouviu episódios de violência contra meninas e mulheres no último ano, incluindo assédio e violência psicológica; relatórios anuais apontam crescimento de ameaças, agressões e perseguição (stalking). O trabalho segue sendo um espaço crítico de assédio moral e sexual — justamente onde relações hierárquicas são mais assimétricas.
Historicamente, o país passou de uma cultura de naturalização da violência para o reconhecimento jurídico de suas múltiplas formas — um percurso que vai da condenação internacional do Brasil no caso Maria da Penha, que impulsionou a lei de 2006, à posterior tipificação de condutas antes invisibilizadas, como a importunação sexual, o stalking e a violência psicológica. A mudança não é apenas normativa; é também simbólica, pois desloca o foco da “honra” da vítima para a autonomia e o consentimento como centrais nas relações.
O que fazer quando o agressor é alguém admirado? Primeiro, acreditar nas vítimas e garantir acolhimento qualificado, com preservação de provas e orientação jurídica. Segundo, responsabilizar instituições — escolas, universidades, empresas, templos — pela criação de canais seguros, independentes e com fluxo claro de apuração, incluindo medidas cautelares para proteger as denunciantes. Terceiro, formar gestores e lideranças sobre poder, consentimento e retaliação, com políticas explícitas contra assédio e violência psicológica. Por fim, informar: a cidadania cresce quando entendemos que abuso não é “mal-entendido”, mas violação de direitos com previsão penal e civil.
Quando
o agressor veste a toga do prestígio, a conta do silêncio recai sobre mulheres
que perdem anos de carreira, saúde mental e, às vezes, a própria vida. O
direito já dá respostas importantes; cabe às instituições e à sociedade,
especialmente aos ambientes de ensino e de trabalho, fazer com que essas
respostas cheguem antes do trauma. O respeito não é uma virtude de ocasião — é
um dever legal e ético, sobretudo para quem ensina, lidera e guia.
Marcelo Santoro Almeida - professor de Direito de
Família da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio
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