Com o aumento de
casos no Rio Grande do Sul e em todo o Brasil, confira o que a psicanálise pode
contribuir sobre este assunto. Psicanalista afirma que o feminicídio vai além
da violência física: revela uma crise simbólica profunda nas relações entre os
gêneros.
O Brasil registrou 1.450 feminicídios em 2024,
o maior número desde a tipificação do crime em 2015, com uma mulher assassinada
a cada 6 horas — geralmente por companheiros ou ex-companheiros. No Rio Grande
do Sul, 72 mulheres foram vítimas desse tipo de crime no ano
passado e, até 31 de março de 2025, já se somavam 17
feminicídios. Apenas no feriado da Páscoa, que
foi em abril, 10 foram cometidos em 9 cidades do estado. Os dados escancaram
uma ferida coletiva que vai além da violência física: eles revelam o colapso da
capacidade de simbolização e elaboração do sujeito.
Segundo a psicanalista Camila
Camaratta, essa capacidade de elaboração é o que nos permite
transformar impulsos em palavras, conflitos em negociação, desejo em diálogo.
“Quando essa capacidade falha, o sujeito age — age para destruir, calar,
eliminar aquilo que não consegue elaborar. O feminicídio é justamente isso: uma
passagem ao ato que denuncia uma falência profunda na possibilidade de lidar
com o outro”, explica.
Para além das estatísticas, o feminicídio é um sintoma
social — uma expressão violenta e desesperada diante do colapso
de estruturas simbólicas que, até então, sustentavam os papéis de gênero e os
modos de se relacionar. “É mais que um dado criminal. É um fenômeno psíquico,
histórico e cultural que expõe o desamparo do sujeito frente à perda de
referências sobre o que é ser homem, o que é ser mulher e como coexistir com o
desejo do outro”, pontua Camaratta.
Desde Sigmund Freud, a psicanálise
entende que a civilização opera como um freio às pulsões destrutivas. Mas
quando as instituições — como a família, a escola, a cultura — falham em
oferecer contornos simbólicos, essas pulsões encontram vazão. “A destrutividade
e o ódio não são uma falha de caráter, é parte do que nos constitui humanos. O
que nos civiliza é a capacidade de simbolizar e conter esses impulsos. Sem
isso, sobra o ato bruto”, diz a psicanalista.
Por que tantos homens estão
matando mulheres?
A pergunta que assombra famílias e atravessa os
noticiários ganha contornos ainda mais densos quando observada sob a lente da
psicanálise e das estatísticas globais. Segundo a ONU
Mulheres, quase 89 mil mulheres foram mortas de
forma intencional em 2022 no mundo, e cerca de 60% desses
crimes ocorreram dentro de casa, pelas mãos de parceiros íntimos ou familiares.
Entre os principais fatores apontados por
organizações internacionais como a OMS e o United
Nations Office on Drugs and Crime (UNODC,
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) estão:
normas patriarcais enraizadas, sentimento de posse, ciúme patológico, histórico
de violência na infância, falhas institucionais na prevenção e uma cultura que
ainda tolera agressões masculinas como forma de reação.
Camaratta observa que, em muitos casos, o homem que
mata tenta desesperadamente reaver um senso de controle e posse do que perdeu.
“É como se o sujeito dissesse: ‘não suporto que o outro exista sem ser meu’.
Quando falta a capacidade de elaboração da perda do ser amado, falta também a
mediação. O impulso vira ação sem filtro, e o feminino vira ameaça concreta a
ser eliminada.”Essa lógica é sustentada por discursos propagados por
comunidades em diversas plataformas online — como os incels, redpill e
grupos como os “legendários” — que reforçam a ideia de que a mulher deve
pertencer ou obedecer ao homem, negando-lhe o direito à autonomia.
Ela acrescenta que a rigidez das imagens de
masculinidade — ligadas ao poder, controle e honra — contribui para que homens
experimentem a autonomia feminina como afronta. “Essa construção ideológica
produz sujeitos vulneráveis à angústia do abandono, da frustração, do não saber
lidar com o desejo do outro. Ao invés de elaborar o luto pelo desenlace, eles
agem.” Muitos desses homens ainda veem as mulheres como extensão de sua
propriedade — um reflexo de valores patriarcais que associam a posse à identidade
masculina.
Além disso, fatores psíquicos individuais se
somam a esse contexto. O uso nocivo de álcool, traços de personalidade
antissocial e histórico de vínculos primários que não transmitiram a confiança
básica necessária, compõem o cenário de risco. Embora esses fatores possam
influenciar o comportamento, nem a bebida, nem o uso de drogas isentam a pena
ou a agravam judicialmente. “É uma bomba-relógio que estoura quando nenhuma
instância simbólica — nem social, nem afetiva, nem psíquica — funciona como
barreira”, diz Camaratta. Os homicídios cometidos sob violenta emoção podem ter
a pena reduzida. Embora o ciúme não seja reconhecido como violenta emoção,
também não é considerado motivo fútil. Como esses casos vão a júri popular, o
preconceito contra mulheres ainda pesa nas decisões. Somente recentemente o STF
vetou o uso da "legítima defesa da honra" — argumento que, por muito
tempo, levou muitos acusados à absolvição.
A contribuição do pediatra e psicanalista Donald
Winnicott também ilumina essa questão. Segundo ele, quando o
ambiente falha — especialmente nos primeiros vínculos afetivos — o sujeito pode
não desenvolver recursos psíquicos para suportar frustrações. Em um mundo em
que vínculos estão cada vez mais frágeis e afetos são mal elaborados, o outro
vira ameaça, não companhia. “O feminicídio, então, surge como um gesto radical
para reestabelecer um suposto controle que na verdade nunca existiu”, analisa
Camaratta.
A historiadora e psicanalista Élisabeth
Roudinesco, por sua vez, relaciona essa violência ao vazio
simbólico deixado pelo declínio do patriarcado tradicional. Em obras como A Família
em Desordem e O Eu Soberano, ela aponta que a queda das estruturas
de autoridade não foi acompanhada por novas formas de subjetivação. Resultado:
uma geração de sujeitos desorientados, ressentidos e sem referências sólidas.
“A ausência de novas narrativas para a
masculinidade gera um vazio perigoso. Sem uma resignificação simbólica, o
sujeito se defende da angústia com atos concretos — como o assassinato. O
feminicídio é a encenação trágica de uma subjetividade em ruínas”, interpreta
Camaratta.
Ela enfatiza que a solução não está apenas no campo
penal ou legislativo, embora esse seja um pilar essencial. “Precisamos criar
espaços de escuta, de elaboração e ressignificação simbólica de novos sentidos.
A psicanálise nos ensina que o sintoma carrega uma mensagem. Escutá-lo é o
primeiro passo para mudar.”conclui a psicanalista.
O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM
2025) confirma a gravidade do cenário nacional: além dos 1.450
feminicídios registrados, outros 2.485 homicídios dolosos de mulheres ou lesões
seguidas de morte foram computados em 2024. Ainda que isso
represente uma leve queda de 5,07% em relação a 2023, os números continuam
altíssimos.
“O número pode cair, mas o trauma permanece. O que precisamos é uma mudança de cultura — e isso só será possível se passarmos a ver a mulher não como ameaça, mas como interlocutora legítima de um mundo mais plural, mais feminino e consequentemente menos violento”, finaliza Camaratta.
Camila Camaratta - psicóloga e psicanalista, formada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Gaúcha, possui formação em Psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), onde é membro pleno. É também membro associado da Federação Latino-Americana de Associações de Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise (FLAPPSIP). Sócia-fundadora da Associação Piera Aulagnier, Camila atua como supervisora clínica e coordenadora de seminários.
www.camilacamaratta.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário