Está no mural do Facebook de
C.B.S.: "Tu julgarás a ti mesmo. É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues julgar-te bem,
és um verdadeiro sábio". Ela acrescenta à própria publicação, como quem se
explica: “Sim, continuo no Pequeno Príncipe”.
Concordo: é mais fácil julgar
o próximo do que a si. Penso, aliás, que para adquirir a condição de julgar-se
é necessário muito exercício intelectual. Julgar-se pressupõe saber olhar-se,
e, em se olhando, saber se ver. Não é fácil ver a si mesmo. Menos ainda ver-se
com olhos escrutinadores.
Suponho que se consiga
alcançar algum tanto dessa percepção de si. Mas, cá pra nós, nisso jamais
alguém será assaz neutro. Sempre serei suspeito na condição de julgador de mim
mesmo, até porque terei que ser meu promotor, juiz e carrasco e, nalgum ponto
do processo, acabo indulgente comigo.
Além da suspeição (suspeita de
mim mesmo), a tarefa em si é árdua: inclui, ou não me acusar, ou absolver-me de
suposta culpa, ou culpar-me. Ou, será pior do que tudo: acusar-me e jamais
proferir veredito, carregando-me sofregamente por aí, debaixo das dores de um
caso não concluído.
Sobre uma autoanálise incidem
processos psicológicos profundos e complexos. Uma moral conservadora
introjetada por aparelhos ideológicos, como família, igreja, escola etc.,
conflita com desejos e gera eternos autoculpados com as sequelas do
autoculpar-se. A tensão cresce.
“É a agressividade do superego
que, sob a forma de censuras, se faz ruidosamente ouvida; com frequência, suas
exigências reais permanecem inconscientes. Se as trazemos ao conhecimento
consciente, descobrimos que elas coincidem com os preceitos do superego
cultural predominante.
O superego cultural
desenvolveu suas ideias e estabeleceu suas exigências. O problema que temos
pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização – isto é, a
inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua” (Freud,
O mal-estar na civilização, editado).
Todavia, se ao superego social
que me alcança, na severidade de suas ordens e proibições, desimportam meus
desejos (a felicidade do ego), dando escassa atenção às minhas resistências
contra a obrigação de obedecê-las, eu, todavia, sou mais eu: tenho um id e
outros interesses a atender.
Se me é exigido demasiado,
torno-me infeliz. Mecanismos de defesa do ego entram em ação, intentando
preservar-lhe a integridade. Surgem esforços de ponderar interdições e desejos.
Vem angústia, vêm esforços de solução. Tortuosamente, ajusto-me; buscarei um
jeito de me acudir.
Contudo, não dou conta de
todas as incidências que me afetam: nem as externas, nem as internas; nem as
que me aprazem, nem as ameaçadoras. Mesmo se creio que me resolvo, ainda assim,
no máximo, me esgueiro, no meio disso tudo, dos meus conflitos jamais
resolvidos.
Essas coisas me ocorreram ao
ler o escrito de C.B.S.. A leitura também me lembrou a máxima de Exupéry: “Tu
te tornas eternamente responsável por quem cativas”. Provoco-a: – Ruim, no
livro, só a ideia de que alguém é responsável por quem cativa. Nem creio que
alguém cative alguém.
Ela contesta: – Cativar como
despertar um sentimento de carinho. Nunca fizeram isso contigo? Em italiano é
addomesticare, aí a ideia não me agrada tanto. A gente não se deve despreocupar
totalmente com o sentimento do outro, não como responsabilidade, mas como
humanidade, grátis.
Concordo com o carinho, com o
preocupar-se com o outro, mas há mais para dissidiar: – Não é grátis. Seria
ingenuidade crer nisso. Quem conquista e quem é conquistado, ambos logo mandam
a conta da relação. Há carinho, todavia, dirigido ao outro feito objeto; objeto
de desejo, porém, objeto.
Tema psicanalítico: objeto do
desejo, suporte do desejo, objeto causa do desejo; a busca do objeto desde
sempre perdido. Bem, do objeto se quer a posse exclusiva. Com o objeto se
estabelece relação de poder. C.B.S., tudo isso é, pois, uma avidez nossa, não é
uma responsabilidade.
Surpreendo-me com C.B.S.
refluindo: – Ah não... Mais um pra me "acusar" de ingenuidade
crônica! E eu persisto no erro... Burrice?. Sinto-me acusado: vou ao mural de
C.B.S., buscando entendê-la. Não quero dissipar os devaneios de uma menina,
todavia não vou fazer concessões a uma mulher.
Bem lida, concluo: – Burrice?
Não. É declaração voluntária de ingenuidade, mas de uma mulher que, apenas,
curte o charme dos dizeres ingênuos, sem, contudo, ter coisa alguma desse
estado que é puro vazio d'alma. Atilada, inteligente, linda, culta e
competente, é o que mais me parece ser.
C.B.S. (ainda) não me
respondeu, mas deixou-me o addomesticare. Volto a Exupéry. O principezinho
declara querer a amizade da raposa do deserto. A raposa, sabe-se lá por quais
desejos, diz-lhe que só pode ser domesticada. Então, tristemente, dá-se início
a um caso de domesticação.
O principezinho, ademais, é
cheio dessas coisas de apoderar-se e de oferecer-se em submissão. Deixa-se
picar por uma cobra para voltar à Rosa, de quem quer cuidar e a quem atribui
responsabilidade por tê-lo cativado. Intrometido, possessivo, doentio. Quero
essas coisas, não.
Trocar carinhos. Aconchego é muito bom. Se não acontece, faz uma falta danada. Cuido; peço cuidados, que a vida não é vivida em via de mão única. Mas, sem essa de cativação: ninguém será responsável por mim; tampouco serei responsável por alguém. Simples e livres assim.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC
Psicanalista e Jornalista
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