‘Qual de vós, querendo construir uma
torre, não senta primeiro e calcula os gastos para ver se tem o suficiente para
terminar’ (Lucas 14:28)Freepik
Depois de mais de três anos
discutindo a PEC 45\19, e de tantas mudanças no projeto original, chegamos a um
ponto em que parece necessário fazer uma parada e voltar ao ponto de partida
para um eventual reposicionamento, ao invés de continuar avançando em um
emaranhado cada vez mais complicado e que caminha para uma direção contrária ao
objetivo inicial de simplificar.
O que se esperava da reforma
tributária do ponto de vista dos contribuintes? Nada muito ambicioso;
simplificação do sistema, sem aumento da carga tributária.
Ao invés de se adotar o
procedimento clássico de partir dos problemas para a solução, isto é, analisar
as maiores dificuldades dos contribuintes e discutir as possíveis alternativas
para resolver os problemas encontrados, passou-se a debater uma proposta
elaborada de cima para baixo.
Embora tenha sido um projeto
muito bem elaborado do ponto de vista teórico, não se ajusta à realidade do
país, e visa a muitos objetivos, além do de modernizar o imposto sobre consumo.
Basicamente, o Brasil tem dois impostos de consumo, o ICMS, dos Estados, e o
ISS, dos municípios, que tinham a exclusividade para esse tipo de
tributação.
Por causa dos múltiplos
objetivos, e do fato de que esses tributos pertencem a entes federativos
diferentes, surgiram “adaptações” visando encaixar o texto na realidade. Por
isso o projeto foi se tornando cada dia mais complexo e aumentando as
incertezas sobre seus resultados.
A PEC se baseava na criação de
um IVA, com alíquota única, sem incentivos fiscais, seguindo, segundo seus
autores e defensores, os padrões de países da OCDE. Essa foi a narrativa que
acompanhou o debate na Câmara, e fora dela, mas não correspondia à realidade da
maioria dos países desse bloco, que possuem alíquotas múltiplas. Além disso, se
referiam a realidades muito diferentes da brasileira, a começar pela Federação,
com três níveis de entes que possuem autonomia tributária, o que, segundo
afirmava o ex-ministro Francisco Dornelles, representava a maior dificuldade
para a realização da reforma tributária no país.
As discussões sobre a PEC 45,
até a polêmica aprovação na Câmara, enfatizavam as vantagens da simplificação
que a criação do IVA traria, e menos as dificuldades, os riscos, e os custos de
sua implementação. Mais do que uma reforma tributária do consumo, representava
uma “ruptura” do sistema tributário vigente, com múltiplos objetivos, afetando
Estados, municípios e contribuintes de forma profunda, e criando incerteza para
todos.
Dentre esses objetivos,
propunha a mudança da natureza de um imposto, o IPI, e de uma contribuição,
PIS/COFINS, para transformá-los em imposto de consumo. Pretendia também
transferir carga tributária de um setor (Indústria) para outro (Serviços). Mudava
a sistemática de incidência do Imposto da origem para o destino. Alterava o
critério para distribuição das cota-partes do IBS em detrimento dos municípios
maiores.
Para viabilizar a aprovação da
reforma na Câmara, foi proposta a criação de um Fundo para compensar os
incentivos fiscais dos Estados e outro para estimular o desenvolvimento
regional, criando dois Fundos, sem especificar as fontes de
financiamento.
Foi necessário adotar um
período de transição de oito anos para os contribuintes. Para os entes
federativos, a transição prevista era inicialmente de 50 anos (baixado no
Senado para 20), o que seria algo inédito no Brasil e, provavelmente, no mundo,
se não for alterada no caminho.
O Senado manteve a maior parte
das propostas da Câmara, mas introduziu modificações que agravaram a
complexidade, os custos e a incerteza.
Aumentou o valor dos Fundo de
Compensação dos Benefícios Fiscais, e o mais grave é que existe a possibilidade
de que, se os montantes previstos forem insuficientes, o governo federal deverá
aportar mais recursos.
Criou um Fundo para o Amazonas
e, já no Plenário, criou mais um Fundo para Estados não contemplados, da região
Norte.
Quando se fala que a PEC será
neutra, não aumentando a carga tributária e, inclusive, criando regras para
avaliar os resultados da substituição do ICMS, ISS e PIS\COFINS pelo CBS e IBS,
não se considera que os Fundos representam um aumento bastante significativo da
tributação. É evidente que esses recursos sairão dos contribuintes, seja
sacrificando outros objetivos do orçamento, mas, o mais provável, para não
dizer o mais certo, é que será necessário o aumento de outros tributos. Dizer
que não se pode considerar os recursos dos Fundos como parte da Reforma
Tributária é um sofisma.
Isto porque o governo federal é
deficitário, e vem aumentando impostos por conta do “arcabouço fiscal”.
Comprometer as finanças do governo federal por um valor tão elevado (estima-se
em cerca de R$ 800 bilhões em 20 anos, mas pode ser bem mais porque o Fundo dos
Incentivos é uma conta em aberto) e um período tão longo, pois os aportes
desses Fundos ultrapassam o mandato de vários governos, parece ser um risco
muito sério tanto para o Executivo como para os beneficiários e para os
contribuintes. Isto porque os próximos governos, ou o Congresso, podem mudar
não apenas esses valores, como também as regras do período de transição, tanto
a dos contribuintes, como para os entes federativos.
Argumentar que isso é difícil
porque é constitucional não parece procedente, porque vimos a facilidade com
que se aprovou o fim do “teto de gastos” e, pior ainda, o “atropelo” da
Proposta da reforma tributária na Câmara e no Senado. Ressalte-se que esses
episódios fragilizaram a confiança na Constituição como instrumento de garantia
dos contribuintes e dos cidadãos.
Destaca-se que o texto do
Senado não eliminou, pelo contrário, aumentou as incertezas contidas no projeto
aprovado pela Câmara e não dispõe de cálculos fundamentais para uma avaliação
mais segura dos custos e dos efeitos da reforma, tanto para os contribuintes
como para os Estados e municípios. Além da falta de dados, transfere para a Lei
Complementar disposições absolutamente necessárias para a análise do que se
está propondo constitucionalizar. Estão edificando a Torre sem terem os
cálculos necessários, como recomenda o Evangelho.
Curiosamente, alguns dos
defensores da aprovação da PEC como ela se encontra, embora sejam favoráveis ao
equilíbrio fiscal, não manifestaram preocupação com os custos dos Fundos para o
governo Federal (e para os contribuintes), enquanto outros que defendiam
alíquota única como fundamental, manifestam inconformismo com a multiplicidade
de alíquotas, mas defendem a aprovação da proposta como se encontra.
O argumento é que seria melhor
aprovar assim, mesmo constitucionalizando os problemas, do que discutir com
racionalidade se esse, efetivamente, é o melhor
caminho.
Outro ponto polêmico da PEC 45,
a criação do Conselho Federativo, que vai centralizar poderes dos Estados e
Municípios, além de ser um órgão de arrecadação, normativo, árbitro nos
conflitos federativos, teve pequena mudança, além do nome para Conselho Gestor,
com a retirada da competência para apresentar Projeto de Lei Complementar.
Manteve a proibição de que os
entes subnacionais não mais poderão conceder incentivos fiscais, o que, somado
à centralização da arrecadação, implica subtrair-lhes poderes decorrentes da
autonomia prevista na Constituição como cláusula pétrea.
Os governadores e prefeitos não
terão segurança para elaborar seus orçamentos durante a transição, porque é
impossível avaliar os impactos das mudanças da origem para o destino, das
alíquotas referenciais do imposto que poderão praticar porque dependerá do
conjunto, dos impactos das alíquotas e sistemas diferenciados da tributação, o
que deixa grande incerteza também para os entes federativos durante um período
que pode ser longo.
No caso dos municípios maiores,
com a passagem do ISS, o imposto que mais cresce, para o IVA e as mudanças nos
critérios da cota-parte, fica difícil elaborar e administrar o orçamento, e nos
menores ocorre o mesmo, devido às exigências a que estão submetidas algumas
parcelas das transferências.
Uma dúvida procedente é a de
por que o governo federal aceitou a criação desses Fundos se já se encontra com
dificuldades para cumprir o “arcabouço fiscal” e permite especular com o
aspecto político da decisão, pois, na medida em que se neutraliza os
governadores com o Conselho Gestor e a vedação de conceder incentivos,
fortalece o poder do governo central com a gestão dos Fundos.
Talvez o maior problema da
proposta aprovada no Senado, do ponto de vista dos contribuintes, seja de onde
sairão os recursos para os Fundos, e a incerteza que deverá perdurar nos
próximos anos, e pode comprometer a expansão dos investimentos em um período em
que o Brasil se apresenta ao mundo como o que oferece maiores possibilidades de
investimento no campo da energia limpa e dos biocombustíveis, e de minérios indispensáveis
para a fabricação das baterias elétricas, além de ser o maior exportador de
alimentos para o mundo.
Para concluir, podemos dizer
que aumentou a complexidade da tributação do consumo, mas, se podemos
complicar, por que simplificar?
Economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo
Fonte: https://dcomercio.com.br/publicacao/s/reforma-tributaria-custos-e-incertezas
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