É fácil compreender o motivo pelo qual muitas pessoas estão comentando o documentário "O Dilema das redes" da Netflix, porque, de fato, é um impasse que ocorre nas redes sociais com fortes implicações no âmbito social e econômico. Todos reconhecem isso, já que a internet e seus desdobramento trouxeram muitos aspectos positivos, desde conexões entre pessoas afastadas, novas empresas e negócios, entretenimento, educação, fomento aos relacionamentos interpessoais, pesquisas coletivas, ações colaborativas em larga escala e até problemas de saúde sendo resolvidos em curto prazo. Os benefícios são inúmeros e esse lado da moeda é ótimo.
Mas, o que nem todos percebem são os efeitos
colaterais nocivos e nada ingênuos desse suposto avanço tecnológico.
Construímos incessantemente uma mentalidade que mostra a época em que vivemos.
Como seremos retratados no futuro? Talvez como zumbis buscando aprovação
constante, fingindo uma pose, uma vida, um corpo para uma foto a ser
compartilhada, curtida e invejada? Estamos enfeitiçados, viciados e alienados.
Vivemos a suposição de avanço e liberdade
enquanto somos manipulados psíquica e emocionalmente e, por isso, valem os
questionamentos a seguir: realmente estamos livres quando formamos filas para
comprar algum produto? Genuinamente somos autônomos para reproduzirmos
pensamentos e comportamentos quando não fizemos uma profunda reflexão? De fato,
temos conhecimento quando não abrimos um livro e lemos ou buscamos as fontes e
as antíteses para formar nossa opinião?
A tecnologia sedutora e manipuladora descobriu o
poder do inconsciente, bem que Freud nos avisou sobre isso há mais de 100 anos
atrás. O inconsciente é uma parte da nossa mente que só dominamos, em certo
grau, quando analisamos a motivação para determinados comportamentos. Podemos
sim ter acesso ao inconsciente, mas isso exige trabalho, esforço,
autoconhecimento e autorresponsabilidade. Assumir nossas falhas, mas também
nossa essência, nosso propósito de vida e nosso desejo são tarefas de uma
travessia do inconsciente. Ou cada um faz isso, ou isso é feito para cada um. A
tecnologia tem assumido esse lugar, o lugar de desvendar - manipular - os
desejos, as intenções, os gostos de forma altamente eficaz, pois, quando
escolhemos uma viagem, um objeto, uma casa, um celular, realmente estamos
escolhendo ou isso nos é "sugerido" o tempo todo ao dar um scroll
na tela do smartphone ou computador?
Parece que não, parece que nossa "chupeta
digital" dita inclusive o que perceber, como sentir, como reagir e até o
que argumentar. E se você discordar daquilo que está escrito aqui, irá
rapidamente encontrar centenas de comunidades que também vão criticar, e aí
você se fecha outra vez em sua bolha onde será compreendido e apoiado, pois
ninguém mais consegue suportar frustrações, solidão e pensamentos críticos.
Os personagens do documentário dizem que sabiam o
que estavam fazendo, mas mesmo assim fizeram. Isso pode ser chamado de razão
cínica, um conceito de Slavoj Zizek, filósofo esloveno, que mostra como a
cultura vigente é pautada pelo cinismo: "Sabemos que está errado, mas
mesmo assim fazemos". Temos alianças sociais que reproduzem isso. Quando
alguém posta o famoso "#TBT" de um final de semana maravilhoso com
fotos totalmente editadas e, talvez, instantes antes estava discutindo, ou
triste, mas mesmo assim parou para tirar a foto, não é a reprodução de um
cinismo? Por outro lado, mesmo imaginando que a felicidade daquela foto pode
não ser real, não deixamos de sentir que deveríamos ter uma mesma vida.
Simulamos um mundo, uma realidade paralela, mas
em nosso psiquismo não sentimos essa diferença. Então é por isso que jovens se
matam por não serem aceitos ou por se sentirem impotentes. Por isso que
passamos o jantar com nossos celulares enquanto outras pessoas preenchem o
cenário da casa num vazio de sentimento. Por isso nos escondemos nos banheiros
para ter mais tempo para ver um mundo correr virtualmente. Já somos zumbis
virtuais em busca de um mundo utópico com a ilusão de que temos uma consciência
ampliada. Nunca fomos tão cegos acreditando que percebemos uma realidade
aumentada, assim como no conto de Herbert George Wells, escrito em 1899,
"Em terra de cego" quem tem um olho é o estranho, o esquisito, o
rechaçado. Resta saber quem de nós é cego e quem enxerga.
Se por um lado o documentário mostra que a guerra
do "controle remoto" está ameaçando a democracia e desestabilizando o
tecido social, por outro lado podemos combater esse "Frankenstein
Digital" subvertendo a demanda e alterando o rumo.
Mudanças são possíveis e se analisarmos o
inconsciente da rede que é formado por cada um de nós podemos acelerar o
bem-estar coletivo. Se nos conectarmos com a parte boa da web - não a deep -
para deixarmos de participar do "rebanho ego-gregário" podemos
construir uma sociedade que encontre a cura para a covid-19 e para a dismorfia,
a distorção e o vício de uma vida ilusória que nos é imposta. Nosso dilema não
é usar ou não a tecnologia - não temos essa escolha - mas ao utilizar, que
possamos nos questionar qual benefício verdadeiro estamos tendo quando doamos
nossa vida e nosso tempo para ela.
Márcia Tolotti - psicóloga e psicanalista, consultora financeira e
especialista em educação financeira a nível pessoal e corporativo. Já publicou
sete livros sobre autoconhecimento e mercado financeiro, como ‘O Desafio da
Independência - Financeira e Afetiva’, que já teve mais de 50 mil exemplares
vendidos, e ‘As Armadilhas do Consumo’. https://marciatolotti.com.br/
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