Hannah Arendt dizia que a "bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom.” A bondade é uma atitude que fica presa no corpo do autor - que não se reconhece como tal - e seus efeitos vão sendo espalhados sem assinatura, sem indicação de origem. Da mesma forma, a dor que sentimos também não é algo compartilhável com o mundo. Não há como expressá-la sem se valer de muitos subterfúgios e, mesmo assim, quando tentamos, o resultado é só uma tênue sombra do que foi vivido.
A dor que se anuncia é a expressão de algo tão
subjetivo, tão próprio, tão privado (é uma privação), que não há como
reconhecê-la naquilo que se diz ser ela. Toda manifestação pública da dor tende
a se tornar algo caricato, o ricto e os gritos e os movimentos do corpo chegam
a causar um certo desconforto e afastam as pessoas - ou as aproxima, mas por
curiosidade. Não há nada que se possa dizer diante da dor dos outros e quando,
mesmo assim, falamos, tudo parece menos do que o mínimo necessário.
É estranho, mas mesmo quando temos consciência de
que falar não é necessário, não conseguimos refrear a lamentação pela dor
alheia, assim como também agradecer pelos atos de bondade. É difícil
compreender e aceitar que só é possível comunicar o que já experimentamos e a
dor não se traduz por palavras ou gestos convencionais. O silêncio é o único
discurso possível da dor.
Na pandemia, os noticiários informam diariamente
sobre os mortos e sobre o drama dos casos graves, além das reportagens ouvindo
os que lutam contra a doença. Há os que exigem que também sejam publicadas
informações sobre as curas e, com isso, tentam forçar uma normalidade que
permitiria a retomada das atividades laborais. Mas nenhum desses esforços de
informação chega perto do que se passa com as pessoas afetadas, porque o que se
passa com elas não é comunicável.
Os números, alinhados, sobrepostos, expostos em
percentuais, emoldurando gráficos e mapas, falam sobre algo voltado para
orientar as políticas públicas e as ações de prevenção. Mas não alcançam o que
sentiu o homem que morreu sem ar, a filha que não viu o pai voltar para casa, a
mãe que enterrou o filho sem poder dar um último abraço. Essa energia da dor
satura o ar, entranha-se nas ranhuras das casas, percorre centenas de
quilômetros, em todas as direções e, no momento em que falamos sobre elas,
desvanecem-se. Faz-se noticiário das mortes. Não da dor.
Quando o jornal diz que agora são cem mil os
mortos, não há um salto de dor, uma elevação do grau do sofrimento, como se a
cada mil, dez mil, a dor também se intensificasse. Esses números deveriam gerar
raiva, inconformismo - esses sim, sentimentos úteis, porque instruem nossas
decisões, quando a razão identifica os responsáveis pelos erros públicos que
contribuíram para essa carnificina. Joseph Stalin, um dos maiores assassinos da
humanidade, dizia que uma pessoa morta era uma tragédia; um milhão de pessoas
mortas, uma estatística. Ele entendia de violência e de como os números são
capazes de escondê-la. É no drama pessoal, privado, único e irrepetível que a
dor ecoa.
Apenas os poetas, os artistas, os músicos,
conseguem trazer à superfície um vislumbre de sua face. Por isso, eles
deveriam, pelo menos alguns dias na semana, substituir os jornalistas de ares
sisudos, e recitarem um verso, assobiarem uma canção, esboçarem uma cena em giz
ou carvão. E depois deixar o silêncio conectar as dores dos outros às nossas
próprias experiências, momento em que se revela o indizível, que precisamos
compreender e suportar, para continuarmos vivendo.
Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica e
professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
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