O Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(Coaf), órgão de deliberação coletiva com jurisdição no território nacional,
criado pela Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, integrante da estrutura do
Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem por finalidade disciplinar,
aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências
suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei de Lavagem de Capitais.
O Decreto nº 9.663, de 1º de janeiro de 2019, é a
norma regulamentadora do referido órgão, tem por escopo estabelecer a
organização e competência do Coaf, inclusive as vedações aos seus integrantes.
Dentre as vedações, cumpre aqui destacar, por oportuno, a prevista no inciso IV
do artigo 7º do referido estatuto, que impede, peremptoriamente, os agentes
públicos de fornecerem ou divulgarem as informações de caráter sigiloso,
conhecidas ou obtidas em decorrência do exercício de suas funções, inclusive
para os seus órgãos de origem.
Infelizmente, mais uma norma foi descumprida pelos
agentes públicos que deveriam preservá-la. Conforme se depreende das
informações trazidas pelos principais meio de comunicação do país, algum
servidor público vinculado ao Coaf forneceu informações sigilosas a respeito do
senador eleito Flávio Bolsonaro e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz.
Diante deste vazamento de informação sigilosa, a
presidência do Coaf e o Ministro da Justiça e Segurança Pública têm o dever de
determinar a instauração de sindicância no órgão para apurar a irregularidade
praticada e impor severa punição ao infrator, sob pena de incorrerem em crime
de prevaricação.
Mas será que Sergio Moro tem condições para
determinar a punição pelo vazamento? Como é de conhecimento notório o ex-juiz,
no exercício da judicatura na 13ª Vara Criminal Federal da Subseção Judiciária
de Curitiba, deixou vazar gravação ilegal feita de conversa estabelecida entre
a então Presidente da República Dilma Rousseff e o ex-Presidente Lula.
Em que pese Flávio Bolsonaro ocupe um cargo
eletivo, tal fato não retira a sigilosidade de suas operações financeiras.
Dessa forma, jamais poderiam ser objeto de vazamento para a imprensa. Por obvio
que os jornalistas políticos, de todas as esferas da comunicação, tem por
ofício apurar os fatos e divulgá-los a seu público, não podendo ser
responsabilizados pelas ilegalidades praticadas pelos “fornecedores” das
informações sigilosas.
A ilegalidade da divulgação, na espécie, afigura-se
ainda mais grave pelo fato de sequer Flávio Bolsonaro ser investigado pelo
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, segundo informações divulgadas
pelo Procurador Geral de Justiça.
A divulgação relativa ao ex-assessor de Flávio
Bolsonaro também é absolutamente ilegal, mesmo sendo alvo de investigação pelo
órgão ministerial, na medida em que o Estatuto do Coaf, categoricamente, veda a
divulgação de informações sigilosas.
Por outro lado, ingressando em relação a legalidade
das informações fornecidas diretamente pelo Coaf ao Ministério Público do Rio
de Janeiro, embora o Supremo Tribunal Federal, em sua 1ª Turma, tenha se
posicionado pela possibilidade, entendo ser flagrantemente ilegal. Explico.
O Superior Tribunal de Justiça, em recentíssima decisão
proferida pela Terceira Seção, na esteira também de orientação firmada pelo
Supremo Tribunal Federal, no julgamento o Habeas Corpus n. 125.218/RS,
consignou que “não se admitem que os dados sigilosos obtidos diretamente
pela Secretaria da Receita Federal do Brasil sejam por ela repassados ao
Ministério Público ou à autoridade policial, para uso em ação penal, pois não
precedida de autorização judicial a sua obtenção, o que viola o princípio
constitucional da reserva de jurisdição” (Recurso em Habeas Corpus nº
61.367 – RJ,
Relatoria do Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA).
Extrai-se do mesmo julgado o seguinte excerto que
é, mutatis mutantis, fundamental para concluir quanto a nulidade do
fornecimento direto das informações obtidas pelo Coaf ao órgão de investigação,
que é o Ministério Público do RJ: “Dessa forma, verificando-se que a
materialidade do crime tributário tem por base a utilização, para fins penais,
de dados sigilosos obtidos diretamente pela Receita Federal, sem a
imprescindível autorização judicial prévia, tem-se a nulidade da prova que
embasa a acusação. Assim, a nulidade da prova inicial, obtida por meio da
quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, a qual deu ensejo à
denúncia, acaba por contaminar a toda ação penal”.
A decisão da 3ª Seção do STJ guarda perfeita
consonância com a hipótese envolvendo Flávio Bolsonaro e Fabricio Queiroz, uma
vez que, tal como a Receita Federal é o órgão verificador das irregularidades
fiscais para constatação de eventual ilícito criminal contra ordem tributária,
o Coaf é órgão colegiado afeito as apurações de supostas operações financeiras
atípicas que possam ensejar a imputação de crime de lavagem de dinheiro (Lei
9.613/98).
Dessa forma, caso o Coaf tenha fornecido
diretamente ao Ministério Público as informações sigilosas, sem que o Poder
Judiciário tenha autorizado, a nulidade das “provas” (elementos informativos) é
uma medida que se impõe. Os dados bancários e fiscais, para efeitos criminais,
são protegidos pela regra constitucional da “reserva de jurisdição”, o que
condiciona a quebra do sigilo a decisão de um magistrado. Por ser uma regra
constitucional não comporta ponderações, ou seja, deve ser aplicada,
independentemente, de quem seja o destinatário desta medida invasiva. Cabe aqui
trazer a lição do Professor e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Guilherme de Souza Nucci que estabelece, com tintas fortes, que os “cadastros
sigilosos, estejam onde estiverem, com qualquer conteúdo, somente podem ser
acessados por ordem judicial”.
Vivemos
em um Estado de Direito em que o respeito as regras e princípios
constitucionais se impõe a todos, indistintamente os órgãos persecutórios
(Polícia e Ministério Público) não podem ir além das constantes da Constituição
e das leis que regem a matéria, pois do contrário caminharemos para um Estado
Policialesco, para o qual não importam os meios, mas apenas os fins.
Por fim, o cidadão brasileiro não pode condescender
com vazamentos indevidos, nem com quebras de sigilos sem autorização judicial,
sob pena de um dia serem alvo dessa sanha desmesurada de punir que assola esse
país, fruto do excesso de protagonismo do Ministério Público, que se arvora no
direito de atropelar a Constituição e as leis, sem sopesar as consequências
nefastas e irreversíveis que podem causar as pessoas.
Marcelo Aith -
especialista em Direito Criminal e Direito Público
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