O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu
recentemente que na ‘desconsideração de personalidade jurídica’ cabem
honorários para o advogado do devedor se o incidente for julgado improcedente,
ou seja, na situação de o credor denunciar um suposto abuso na gestão de uma
pessoa jurídica e o Poder Judiciário entender que não houve tal utilização
indevida.
É bom lembrar que o ‘incidente de desconsideração
da personalidade jurídica’ é uma ferramenta processual empregada para
responsabilizar os gestores de uma empresa por dívidas dela, ou vice-versa,
responsabilizar a empresa por dívidas de seus sócios ou administradores, em
situações em que há abuso na gestão daquela pessoa jurídica.
Esse uso indevido que justifica essa
responsabilização pode ocorrer por haver desvio da finalidade da empresa para
lesar credores ou por haver confusão patrimonial, ou seja, quando os bens e
recursos de uma empresa acabam se misturando com os bens pessoais dos seus
sócios, administradores ou com o patrimônio de outras empresas do mesmo grupo.
É importante deixar claro que esse precedente do
STJ tem alto impacto nas ações de cobrança e no ramo de recuperação de crédito
em todo o Brasil, porque o incidente de ‘desconsideração da personalidade
jurídica’, que foi o objeto desse julgado do STJ, tem sido o principal
instrumento de desmantelamento de fraudes patrimoniais utilizado no País.
Por exemplo, uma das fraudes mais corriqueiras que
é resolvida com o uso desse instrumento jurídico é aquela que envolve pessoas
interpostas, popularmente conhecidas como “laranjas”, que emprestam o próprio
nome para comporem o quadro societário de uma empresa e, com isso, auxiliam o
devedor a ocultar o seu patrimônio.
Então, esse tipo de incidente tem sido muito
importante, porque se o credor e seus representantes investigam o devedor e
descobrem que ele tem um ‘laranja’; ou ainda, que ele está escondendo bens em
uma holding ou outro tipo de empresa, há a possibilidade de se socorrer do
‘incidente de desconsideração da personalidade jurídica’ para desmantelar
fraudes como essas.
Até há pouco tempo, se esse incidente fosse julgado
improcedente, ou seja, se o juiz não concordasse que havia uma fraude, o credor
não era penalizado por ter feito a denúncia, porque não havia honorários
advocatícios de sucumbência devidos por essa sentença. Portanto, como se
costuma dizer coloquialmente, ficava na prática ‘elas por elas’.
Porém, a partir de agora, tudo mudou.
Com essa última decisão do STJ, caso o credor perca
o incidente, ele terá alta chance de ser penalizado, pois o advogado da outra
parte terá o direito de cobrar honorários deste credor. Normalmente, eles têm
sido estipulados em 10% do valor da causa.
Isso muda totalmente a dinâmica sobre tomar a
decisão de distribuir o incidente, pois quando um credor está cobrando uma
dívida ele já está em prejuízo. Na prática, se aquela parte leva um “calote”,
ela naturalmente já tem uma perda considerável que está tentando recuperar com
o processo. Por essa razão, credores costumam ser muito conservadores na hora
de assumir riscos. A maioria segue a lógica traduzida pelo ditado popular “não
colocar ‘dinheiro bom’ em cima de ‘dinheiro ruim’”. Desse modo, credores que
cobram judicialmente normalmente são muito avessos a medidas que trazem riscos
para eles, pois se já é um amargo infortúnio ter tido o prejuízo de não ser
pago, o caso se torna um desastre completo para o credor se, além de ter que
suportar o próprio prejuízo, ainda precisar pagar honorários para o advogado da
outra parte.
Vale trazer um exemplo para ilustrar. Imagine-se a
pessoa que já ganhou um processo e está em cumprimento da sentença que já foi
favorável a ela. Essa pessoa já correu o risco de ter que pagar honorários de
sucumbência se ela perdesse. Mas ela se sagrou vitoriosa no processo. Só que,
função dessa vitória, a outra parte blinda o próprio patrimônio. Agora o credor
está na famosa situação do “ganhou, mas não levou”. Em determinado momento,
essa pessoa credora percebe indícios que levam a crer que uma fraude está
acontecendo. Entretanto, pela nova decisão do STJ, para denunciar essa fraude,
ela precisará passar uma segunda vez pelo risco de sucumbência (ou seja,
novamente correrá o risco de ter que pagar um percentual para o advogado da
outra parte se a alegação não for aceita).
Portanto, para o credor, esta modificação tornou
muito mais arriscada a decisão de usar o IDPJ. É preciso lembrar que mesmo
havendo indícios de fraude, o Direito não é como uma ciência exata. Sempre há
uma inerente margem para imprevisibilidade em decisões judiciais, trazendo
consigo o risco de sucumbência. Um conjunto de atos que uma pessoa pode
enxergar como claramente fraudulentos pode, para outra pessoa, parecerem
lícitos. Nesse contexto, muitos desistirão de ingressar com o incidente, por
mais que acreditem que há uma fraude acontecendo, pois não querem assumir o
risco de terem que “pagar para ver”. Nesse ponto, há legítima preocupação de
que a decisão do STJ possa gerar um efeito de incentivo desse tipo de fraude e
de blindagem patrimonial ilícita.
Por outro lado, para o devedor e advogados de
devedores, a decisão é altamente benéfica, pois há agora um fator fortemente
desestimulante para ingressar com essa medida. Vendo dessa perspectiva, essa
decisão traz algumas repercussões positivas, pois na sistemática anterior havia
realmente alguns que abusavam e ingressavam com incidentes de desconsideração
da personalidade jurídica “aventureiros”, ou seja, destituídos de qualquer
fundamento razoável, pois se aproveitavam que não seriam penalizados de nenhuma
forma se eles perdessem.
Essa nova orientação do STJ prestigia os devedores,
que, em alguns casos, ficam na sombra angustiante de esperarem o incidente ser
julgado para saberem se serão ou não responsabilizados pela dívida, muitas
vezes com suas contas bloqueadas por decisões liminares. Esse precedente do STJ
também prestigia os advogados dos devedores, que normalmente têm muito trabalho
para preparar as defesas de seus clientes em incidentes assim.
Entretanto, neste ponto, a decisão do STJ não
tratou com igualdade os advogados das partes, ou ao menos não o fez
explicitamente. É que na decisão constou que “o indeferimento do pedido de
desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão
do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba
honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em
juízo” (REsp 2072206). Em outras palavras: o STJ se limitou a dizer que o
advogado do devedor ganhará honorários se for vencedor, mas não disse que o
advogado do credor também os ganharia se vencesse.
Ora, mas o advogado do credor também tem trabalho
intenso para conseguir levantar todas as informações sobre as fraudes e as
expor na petição do incidente de desconsideração, adicionado de toda a
argumentação jurídica necessária. Então, o precedente da forma como ficou
publicizado não coloca em pé de igualdade os dois advogados. Do jeito como
está, interpretado literalmente, se o advogado do credor ganhar a causa e
provar que teve fraude, ele não receberá nada a mais por ter vencido o
arriscado incidente. No entanto, se o advogado do devedor vencer, ele ganhará
honorários contra o credor.
Há quem diga que o advogado do credor já está sendo
remunerado pelo percentual de honorários advocatícios da ação principal.
Entretanto, se o argumento que prevaleceu no STJ foi o de que o incidente se
caracteriza como uma demanda autônoma – com partes, pedido e causa de pedir
diferentes da ação principal –, e por isso os advogados dos devedores fazem jus
aos honorários, então a mesma lógica deveria servir para que advogados dos
credores também tivessem acréscimo nos seus honorários, justamente por se
tratar de uma demanda separada, conforme o próprio STJ reconheceu.
Há uma outra questão que ainda não se tem a devida
clareza e precisará ser fixada com o desenrolar dos próximos processos: qual
será o valor desses honorários a serem arbitrados? O Código de Processo Civil
dispõe que, em regra, os honorários são arbitrados entre 10% e 20% do valor da
causa, sendo que a maioria dos magistrados de 1ª instância os arbitra em 10%,
podendo ser ampliado nas fases recursais. Mas, no caso do IDPJ, será que essa
regra geral será seguida? Ou haverá arbitramento por equidade levando em
consideração todo o exposto e visando penalizar menos os credores que tentaram
denunciar uma fraude? Vale lembrar que arbitrar honorários por equidade
significa que o juiz, em cada caso concreto, estipulará um valor que ele
entenda ser justo diante do trabalho desempenhado pelo advogado. Talvez, já que
o entendimento jurisprudencial está em evolução, fosse positivo que pelo menos
essa condenação ocorresse por equidade.
Isso porque, em tese, a lei nem prevê de forma
expressa que haveria honorários nesse incidente. O art. 85, do Código de
Processo Civil, diz, muito claramente, que “a sentença condenará o vencido a
pagar honorários ao advogado do vencedor”. Só que, no caso do incidente de
desconsideração da personalidade jurídica, não é uma “sentença” que julga o
IDPJ, mas, sim, uma decisão interlocutória. Inclusive, esse era o principal
motivo pelo qual, até pouco tempo atrás, o entendimento era pacífico de que não
era cabível honorários tanto nesse como em outros incidentes.
Aliás, isso suscita o último ponto controverso
importante sobre essa decisão: a segurança jurídica.
Veja que milhares de credores e seus advogados
distribuíram nos últimos anos seus incidentes de desconsideração da
personalidade jurídica confiando na jurisprudência que era absolutamente
tranquila e pacífica no sentido de que não cabiam honorários sucumbenciais em
IDPJ. Esse fator pode ter sido essencial para a tomada de decisão de
ajuizamento de inúmeros desses incidentes.
Mas, de repente, sem ter havido qualquer alteração
legislativa a esse respeito, o STJ – com base nos mesmos textos de lei que para
ele até pouco tempo atrás diziam uma coisa –, simplesmente alterou a
interpretação anterior para outra diametralmente oposta, sem fazer qualquer
ressalva ou modulação sobre os efeitos desse novo paradigma.
Se essa alteração tivesse vindo por lei, veja que
esse problema de segurança jurídica não existiria, pois na lei poderia constar
que quem distribuiu o IDPJ antes dela estaria resguardado pela lei anterior, e
os próximos atos é que seriam afetados pela nova regra.
Acontece que, pela alteração ter vindo via Poder
Judiciário, em tese eles estão interpretando a mesma lei que já existe desde
2015. Não teve alteração da lei nesse ponto. Então, todas as pessoas que
ajuizaram o incidente crentes na posição anterior do STJ de que não tinham
risco se perdessem, agora correm risco de serem condenados em honorários se por
acaso não vencerem seus incidentes. Talvez, se soubessem de antemão sobre essa
possibilidade, nem teriam distribuído o incidente, ou teriam priorizado outras
medidas executórias em face do devedor. Então, é importante que o Poder
Judiciário tenha sensibilidade quando começar a avaliar esses casos, pois pode
ser que haja cidadãos que foram pegos totalmente de surpresa com essa mudança
de entendimento.
Enfim, essa é uma decisão judicial recente e que
vai ainda provocar muitos debates e discussões sobre a matéria. É
imprescindível que os advogados de todo o País reflitam bem antes de distribuir
um incidente como esse, além de ser imperativo explicar sobre os riscos para
seus clientes. De todo modo, ainda haverá muitas situações em que o incidente
de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) precisará ser utilizado
para resolver o caso, pois muitas vezes ele é a única saída para viabilizar o
recebimento do que está sendo cobrado, a não ser que o credor prefira desistir
do seu crédito a correr qualquer risco.
Nesse ponto, com essa decisão do STJ, tornou-se
mais importante do que nunca a realização de uma investigação patrimonial bem
feita, pois é essa investigação, realizada por especialistas, que poderá
encontrar o máximo possível de provas da fraude, maximizando a chance de vencer
o IDPJ, diminuindo seus riscos, e auxiliando também a encontrar potenciais
outros bens, ativos e eventuais outras teses de recuperação do crédito.
Dr. Rommel Andriotti - advogado, sócio fundador do escritório Rommel Andriotti Advogados Associados e especialista em investigação patrimonial, execução civil e cobrança de dívidas. Atua como professor de Direito Civil e Processo Civil na Universidade Mackenzie. Também é docente dessas disciplinas na Escola Paulista de Direito (EPD). É mestre em Direito (concentração em processo civil) pela PUC/SP (2020), mestre em Direito (concentração em Direito Civil) pela FADISP, possui pós-graduação lato sensu em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Escola Paulista de Direito e é bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU, 2015).