A festa do Carnaval sempre esteve associada, desde
os mais remotos tempos, a uma manifestação de desabafo e de esperança.
Associada, no hemisfério norte, ao fim do inverno, início da primavera, tempo
de semeadura, um trabalho danado, um sofrimento daqueles e então tinha a festa
para comemorar, lembrar juntos e torcer juntos, pedindo para a terra que seja
boa e dê frutos e que o clima seja bom e seja ameno e conforte os corpos
exaustos com seu sol e suas chuvas.
Praticamente todas as sociedades que conhecemos
tiveram festas desse jeito. Na Idade Média, ao duro trabalho rural somava-se as
rígidas interdições da igreja. Vivemos o início da quaresma, longo período de
jejuns e orações para os católicos praticantes. Por que então não se preparar
para essa provação cantando, dançando e comendo e bebendo à valer? O pintor
holandês Pieter Bruegel retratou, em 1559, uma dessas quartas feiras de
cinzas, início de quaresma, mostrando os foliões em uma pousada que ficava ao
lado de uma igreja. O quadro se chama O Combate entre o Carnaval e a Quaresma.
A ambivalência - e a folia - permanecem atualíssimas.
O Carnaval marcou, ao longo dos séculos, um momento
de quebra de regras, de limites, de identidades. Na confusão das ruas, não
havia rico nem pobre, homem ou mulher, religioso ou pagão. A tradição das
máscaras, ainda tão presentes, servia para impedir que se soubesse quem era
quem nas vielas escuras das cidades europeias.
O estudioso sobre cultura e linguagem Mikhail
Bakhtín (1895-1975), escreveu: Os espectadores não assistem ao Carnaval, eles o
vivem, uma vez que o Carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o
povo. Enquanto dura o Carnaval, não se conhece outra vida senão a do Carnaval.
Impossível escapar a ela, pois o Carnaval não tem nenhuma fronteira espacial.
Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com suas leis, isto
é, as leis da liberdade.
No Brasil não foi diferente. A festa trazida para
cá - ainda no período colonial - pelos portugueses, o entrudo, enchia as ruas
com gritos, danças e muita alegria. Da janela, as moças suspendiam por alguns
dias o recato e jogavam água ou farinha nos passantes. Ninguém era de ninguém e
a imagem da autoridade virava do avesso com as fantasias irônicas e exageradas,
os gestos ousados. A integridade não era garantida e os excessos eram comuns.
Como observou o comerciante inglês John Luccock em seu livro Notas sobre
o Rio de Janeiro, publicado em 1829: “já se observou muitas vezes
que uma comunidade se retrata tão bem por meio de seus divertimentos como por
meio de suas maneiras de pensar e agir sério”. Assim era o Brasil.
E como isso incomodava! Por isso, por volta de 1840, a elite carioca - a
capital do Império - resolve dar um basta e proíbe o entrudo. Carnaval tinha de
ser controlado, uma coisa civilizada. A polícia cumpriu à risca as ordens e os
foliões foram rebatizados de “vagabundos e desordeiros”. No lugar das festas
populares, surgem os bailes, nos palacetes protegidos e, depois, nos clubes com
segurança na entrada. E isso dura um bom tempo. Mais pro fim do século, no
entanto, a criatividade brasileira resolve o problema das proibições, criando
os cordões carnavalescos, que copiavam o modelo das procissões religiosas. Como
proibir? Não dava. E, de novo, o carnaval voltou para as ruas.
No período Vargas, o populista gaúcho buscou
normalizar os blocos de carnaval que cresciam a cada ano e criou os desfiles
das escolas de samba, com as agremiações se apresentando na avenida, cantando
sambas enredo que, obrigatoriamente, precisavam tratar da História do Brasil,
de maneira elogiosa, é claro.
E assim, nas últimas décadas, o carnaval tornou-se
um fenômeno turístico de grandes proporções, particularmente no Rio de Janeiro.
Mas nunca deixou de ser uma manifestação da alma popular, embora camuflado sob
grossas camadas de maquiagem.
Até que, no último domingo e segunda-feira, algumas
escolas de samba romperam de novo com a previsibilidade e colocaram na
passarela a irreverência, a crítica, o desabafo, invertendo os papeis,
assumindo o protagonismo do discurso e gritando: Monstros! Ladrões! Corruptos!
- tudo isso ao som das baterias e o aplauso os espectadores.
O antropólogo Roberto da Matta, autor do livro Carnavais,
Malandros e Heróis (1979), disse: Se o Carnaval tem algum
sentido, ele está numa estética da igualdade que apresenta o corpo pobre, mas
harmonioso e belo; e a massa, que deveria se revoltar, envolta em fantasias e
contando, na forma de um samba, histórias impossíveis. O Carnaval é
riso, engano e mentira.
E também verdades. Muitas verdades.
Daniel
Medeiros - doutor em Educação Histórica pela UFPR. Atualmente, é professor de
História do Brasil no Curso Positivo, de Curitiba.