Discussões de saúde pública e privada
O Wuhan-2019 talvez tenha
sido o personagem principal do Carnaval de 2020. E impediu o país de começar o
ano, mesmo depois da bacchanalia, o que já é inédito. Este novo
coronavírus (Covid-19) assusta muita gente, mas algumas pessoas preferem
compará-lo a uma simples gripe, acreditando que sua taxa de letalidade seja
inferior ou equivalente à da gripe H1N1 (suína) ou da H3N3 (comum) e que,
portanto, não deve haver grandes repercussões na economia e no setor de saúde
da maioria dos países do mundo com os estragos com que vem se apresentando.
Quem estaria certo?
Até o presente, o novo coronavírus tem
índice de letalidade próximo aos 3%, segundo informações da Organização
Mundial da Saúde. Mas questiona-se que a letalidade correta seria aquela
relativa ao universo dos que pegaram a doença, e não ao dos índices oficiais,
que estaria aquém do número real de casos. Mas, se não podemos trabalhar com
dados oficiais, com quais trabalharíamos? Gripes cíclicas anuais giram em torno
de 0,1% de letalidade, o que é bem inferior ao poder de matar infectados do
novo coronavírus.
Quanto à sua capacidade de contaminação
e transmissão entre humanos, o novo coronavírus tem poder de transmissão de uma
pessoa para outras duas (ou 1:2). Em termos de comparação, o vírus do sarampo
tem poder de transmissão de 1:18. O sarampo é mais preocupante, em termos de
transmissão, mas o Covid-19 também não deixa de ser relevante neste aspecto, e
talvez tenha um potencial de contaminação ainda maior. Por sua velocidade de
transmissão e presença em mais de dois continentes temos inegavelmente uma
pandemia, embora até isso tenha demorado a ser reconhecido oficialmente, nada
obstante o apelo dos cientistas. A transmissão de pessoa a pessoa do Covid-19 é
agravada pelo fato de que o vírus se transmite por fômite. Pode o patógeno ter
vida extracorpórea por dias no asfalto, e mesmo em superfícies metálicas e
plásticas. E a falta de insumos de proteção para o uso geral dos necessitados,
tais como máscaras, álcool gel, luvas, demonstra que os esforços coletivos e
industriais ainda viáveis devem se voltar ao combate à pandemia.
É uma emergência de saúde pública.
Cientistas de Harvard divulgaram preocupação com o potencial de que 70% da
população mundial possam ser contaminados com o novo coronavírus. Se todos se
contaminarem, em poucos dias o colapso de todos os sistemas de saúde é
inevitável. Por isso, o único e melhor remédio: quarentena e isolamento social.
São impositivos. Deve ser feito por pelo menos 30 dias, prorrogáveis por mais
30.
A ideia não é conter o contágio, mas
desacelerá-lo. Muitas pessoas serão contaminadas, muitos morrerão,
infelizmente, mas temos que evitar que mortes evitáveis não sejam ocasionadas,
como ocorre ainda hoje na Itália, em que doentes graves não são atendidos por
falta de recursos, e morrem. Se os contágios ocorrerem de modo mais
dividido ao longo dos próximos meses, não haverá falta de leitos, falta de UTI,
falta de ventiladores. Isso salvará vidas que podem ser curadas. Nova Iorque
hoje corre contra a possibilidade de não haver ventiladores em UTIs nos
próximos dias. Se isso não se trata de emergência de saúde pública, no centro
do capitalismo, o que seria necessário para parar o desenfreado tilintar da
humanidade?
Enquanto irresponsáveis chamam a
Covid-19 de gripezinha, e “isolemos apenas os grupos de risco”, cientistas de
todo o mundo demonstram ser necessário isolamento social total, com medidas de
quarentena, e testagem massiva de pessoas com sintomas.
Em termos de comparação didática, no
caso do sarampo, sustenta-se que já há uma grande parte da população imunizada,
mas a verdade alarmante é que o vírus do sarampo que transitou no Brasil e no
mundo recentemente não é o mesmo subtipo do vírus constante de sua vacinade
anos atrás. Ele sofreu mutações. Ou seja, não há imunidade absoluta e permanente
da população. O que, em termos de virologia, é a ordem do dia, algo natural e
esperado, para a turma do “deixa disso” é algo nem sabido.
O caso do Covid-19 segue a mesma
dinâmica, mas é peculiar em alguns aspectos. As suas mutações virais são muito
recentes e talvez seja impossível desenvolver uma vacina. Se ela ocorrer,
levará provavelmente alguns anos para se comprovar eficaz. Um fato é que não há
vacina para esta família de vírus que já tenha sido criada pela humanidade.
Este o forte argumento. Por outro lado, há esforços científicos gigantes neste
intento. Ocorre que as mutações virais podem fazer do Covid-19 uma nova ameaça
a cada ano.
O que preocupa, em especial, é a
capacidade de mutação dos coronavírus, o que já se comprova ser o caso deste
Covid-19, que já apresenta mutações em vários lugares do globo. Praticamente,
na família viral (CoV) surge um tipo novo e mortal a cada década, com
importante repercussão na saúde pública: desde 2002, a Sars já fez cerca de 800
vítimas; desde 2012, a Mers também já fez cerca de 800 vítimas. Em termos
absolutos, o Covid-19 já matou muito mais pessoas do que os vírus responsáveis
pelas crises anteriores.
Além disso, questiona-se se o Wuhan-19 pode
se tornar ainda mais contagiante e mortal ao longo do desenvolvimento da
pandemia, e nos próximos anos e surtos, que já são cotados como bem prováveis.
Já se fala em uma possibilidade de
sazonalidade do Covid-19. Outros vírus respiratórios também coronavírus menos
importantes já são responsáveis por cerca de 10% de infecções respiratórias
anuais, sazonais. A estes se somaria o Covid-19 e suas futuras mutações, ano a
ano.
Precisamos focar em tentar criar
vacinas para imunizar a população, e na testagem de medicamentos para tratar os
doentes, em um primeiro momento, ainda que a eficácia destes seja possível, em
tese, apenas para as primeiras cepas do vírus circulante; tudo isso visando à
diminuição da capacidade de alastramento da doença. Mas mesmo isso leva tempo e
exige recursos e empenho estatal, o que não se vê em muitos lugares,
infelizmente. Logo, o alastramento será ainda maior e o Covid-19 fará mais
vítimas no curto e médio prazos. E mais, a maioria das vítimas deve se
concentrar nas camadas mais vulneráveis da população, mas que esteja claro: os
ricos não serão poupados. O vírus, neste aspecto, é democrático. Assim, as
nações do mundo devem adotar e manter efetivas medidas de controle e proteção,
visando ao tratamento de contaminados e à diminuição da transmissibilidade.
Lado a lado com a busca biológica e
médica pelo enfrentamento da pandemia, é necessária uma postura solidária e de
fomento da cidadania que passa por uma discussão de implemento imediato de uma
renda básica de emergência para toda a população, que está de quarentena e com
a renda diminuta ou inexistente. Quantos trabalhadores informais estão sem o
que comer, o que dizer sobre o pagamento das suas contas do mês? Os lucros dos
grandes conglomerados econômicos e financeiros precisam ser tributados com
emergência, de modo a viabilizar um caminho para redução de desigualdades. Essa
discussão ainda é muito incipiente no país, embora a crise de saúde pública
ande de mãos dadas com a crise econômica em iminência e exija medidas urgentes.
Infectados
Parte deles é considerada
assintomática, mas ainda são potenciais transmissores do vírus. Há estudo
relacionando assintomáticos e o contágio de grande parte dos doentes. Pelo
menos 20% de todos os casos são graves, com acometimento pulmonar e necessitam
de internação hospitalar. Embora considere-se que a letalidade do Covid-19 seja
de cerca de 3%, nada garante que essa taxa não irá aumentar. E não há
dúvidas de que a vida de cada um é relevante. Há um mito de que apenas a
maioria deva ser protegida — bem, torça para que você não seja parte dos 3% dos
infectados.
Saída ética
Há um exercício filosófico, conhecido
como “Dilema do Bonde”, em que se questiona se seria justo desviar uma
locomotiva desgovernada, prestes a atropelar cinco pessoas que estão nos
trilhos à frente, de modo que, com essa manobra, a locomotiva atropele apenas
uma pessoa que está sobre os trilhos ao lado.
Não há uma resposta certa para o
dilema; trata-se de uma especulação sobre os fundamentos da ética. Mas é
relevante notar que a maioria daqueles que enfrentam o dilema entende que matar
uma pessoa seria menos ruim do que matar cinco pessoas.
Mas o que justificaria atentar contra a
vida de uma pessoa (que continuaria viva caso o trem não fosse desviado) para
poupar a vida de outras cinco pessoas? Possivelmente, a razão é o desejo humano
de provocar menos danos ao maior número de pessoas. Concluímos, no entanto, que
não se justifica sacrificar uma vida sequer para salvar a vida de outros. Os
regimes totalitários, por exemplo, justificam o sacrifício de uns por muitos,
o que não é aceitável. O que fazer, então?
Pensando na política de redução de
danos, devemos controlar ao máximo a expansão dessa doença. Os leitos dos
hospitais são uns dos insumos mais caros da saúde — pública ou privada —, em
todo o mundo. E são insumos escassos diante da pandemia, por isso devem ser
protegidos com quarentenas e isolamento social total por um período ainda em
teste. Trata-se de uma medida dura para combater algo igualmente difícil,
talvez pior e certamente cruel.
Neste caso, não se pode considerar que
a pandemia teria irrelevância de saúde, para parar a economia com medidas de
quarentena e isolamento. A realidade socioeconômica deve ser afetada pela
pandemia, e não importa que, supostamente, tenha a doença uma baixa taxa de
mortalidade, considerada a população mundial. Afinal, em políticas públicas de
saúde, deve-se minimizar os danos para o maior número de pessoas possível,
sempre respeitando a autodeterminação e o bem estar de todos, não somente de
alguns ou somente da maioria. Toda vida importa. Portanto, tratar a pandemia como
algo sem importância não está de acordo com o papel do Estado e da sociedade
civil em uma crise desta natureza.
Sistemas de saúde
De seu lado, sistemas de saúde públicos
e privados devem se preocupar e tomar medidas conjuntas, proativas e de
assunção de responsabilidades com o avanço da doença para minimizar os impactos
negativos da crise em sua prestação de serviços, notadamente nos setores
ambulatorial e hospitalar para bem efetivar tratamentos como um todo. Cabe
pontuar que o equilíbrio contratual das relações do setor de saúde sairá
comprometido, e as exigências sanitárias incrementadas pela crise devem já
impactar nos preços dos insumos e serviços de saúde, o que em parte já é
sentido por todos.
Paulo André Stein Messetti - advogado formado na
USP, especialista em direito médico e da saúde, mestre em bioética e doutorando
em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do Centro Universitário Saúde
ABC
Stein
Messetti Advocacia.