Realizado em parceria com o Institut Pasteur de São Paulo, o estudo mostra, em modelo experimental, que é possível induzir resposta de células T de forma planejada, com potencial para vacinas mais universais.
Um artigo publicado na revista científica Viruses apresenta resultados inéditos de uma vacina de DNA contra a Covid-19, desenvolvida especificamente para induzir células T – componentes fundamentais do sistema imunológico responsáveis por identificar e eliminar células infectadas. O estudo foi realizado em parceria entre o Institut Pasteur de São Paulo (IPSP), o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e a empresa de biotecnologia ImunoTera. No IPSP, a pesquisa foi liderada por Rúbens Alves, imunologista e virologista que coordena o grupo de Vigilância Genômica e Inovação em Vacinas.
Segundo Alves, o diferencial do trabalho é a prova de conceito de uma vacina capaz de gerar respostas de células T de forma planejada. “Durante a pandemia, as vacinas contra a Covid-19 induziram anticorpos e, por consequência, também células T – mas isso ocorreu como um efeito secundário. Nós mostramos que é possível desenhar uma vacina para gerar especificamente essa resposta, o que abre portas para enfrentar vírus de forma mais abrangente e até mesmo cânceres induzidos por vírus”, explica.
A ideia surgiu logo após a divulgação da primeira sequência do SARS-CoV-2. Inspirado na experiência adquirida durante seu estágio no La Jolla Institute for Immunology, Alves e colaboradores decidiram que, em vez de mirar apenas na “casca” do vírus (como a proteína Spike), era estratégico mirar também no seu “motor”: regiões internas mais conservadas, que tendem a mudar menos com o tempo. Essas regiões foram selecionadas com base nas moléculas de HLA mais comuns na população brasileira, aumentando as chances de a vacina “conversar” bem com o sistema imune local.
Nos experimentos, os pesquisadores desenvolveram uma vacina de DNA que reuniu essas regiões internas conservadas do SARS-CoV-2 e as fundiram geneticamente à glicoproteína D do vírus herpes simples (HSV-1), usada como adjuvante para potencializar a ativação imunológica. Aplicado em camundongos por meio de eletroporação, o imunizante induziu células T altamente funcionais, capazes de produzir interferon-gama (IFN-γ) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α).
Quando
desafiados com o vírus, os animais vacinados apresentaram menor perda de peso,
melhor score clínico e carga viral reduzida em pulmões e cérebro, em comparação
aos controles. O efeito observado garantiu proteção parcial de curto prazo, com
60% de sobrevivência em desafio tardio (5 semanas após a imunização). Em testes
adicionais, a retirada experimental das células T levou à perda desse efeito,
confirmando que esse braço da resposta imune foi o principal responsável pela
proteção registrada.
Impactos para futuras vacinas – Os achados reforçam a importância de se considerar a imunidade celular no desenvolvimento de vacinas de nova geração. Enquanto os anticorpos atuam como “guardas” que impedem a entrada de vírus nas células, as células T funcionam como um “órgão de fiscalização”, eliminando células já infectadas. Essa estratégia de direcionar vacinas para células T pode ter impacto em diversos cenários além da Covid-19.
Em
patógenos intracelulares, como certos vírus e bactérias que se replicam dentro
das células, os anticorpos externos não conseguem atuar de forma eficaz – e é
justamente nesse ponto que as células T são decisivas. No caso do câncer
associado a vírus, como o HPV, a importância é ainda maior: como esses vírus
permanecem no interior das células, cabe às células T reconhecer e eliminar
células infectadas ou transformadas. Já em doenças como a dengue, os anticorpos
podem se tornar um problema, pois, se não forem suficientemente específicos,
acabam facilitando a replicação viral em vez de neutralizá-lo. Nesses casos, a
indução de células T CD8 torna-se crucial para prevenir desequilíbrios
imunológicos e oferecer proteção contra diferentes sorotipos.
Colaboração científica – O projeto nasceu em 2020, no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas (LDV) do ICB-USP, sob a coordenado do prof. Luís Carlos Ferreira, onde Rúbens Alves teve a ideia inicial e conduziu os primeiros experimentos de prova de conceito. Em seguida, a ImunoTera, spin-off do LDV cuja CEO é Luana Raposo de Melo Moraes Aps, primeira autora do artigo, entrou como parceira estratégica: além de já estudar o adjuvante gD em vacinas contra câncer, assumiu parte dos experimentos em animais e dividiu com Alves o depósito do pedido de patente que protege a formulação.
Posteriormente, já no Institut Pasteur de São Paulo, Alves pôde contar com a infraestrutura de alta contenção (NB3), indispensável para os testes de desafio com o SARS-CoV-2. Essa trajetória reforça como a articulação entre diferentes instituições foi decisiva para consolidar os resultados e abrir caminho para vacinas mais universais, duráveis e adaptadas a diferentes populações – uma necessidade cada vez mais urgente frente à ameaça de novas epidemias e pandemias.
“Conseguimos
mostrar que uma vacina desenhada para acionar células T e mirar partes do vírus
que mudam pouco pode reduzir a doença em modelos animais, um caminho
complementar às vacinas tradicionais e alinhado à realidade genética da
população brasileira”, resume Alves.
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