O Estado de Direito é precipuamente um estado de normas. A civilização liberal inventou os direitos como declaração: direitos de proteção, de acesso, de regulação de atos. Todavia, nem tudo o que nos expressa é regulável.
O
liberalismo construiu o Direito de cidadania em oposição ao despotismo,
incluído o estatal. A normatização da vida em comum, todavia, foi extrapolada.
Um liberal “raiz” diria que nos normatizamos na contramão do liberalismo.
Seja:
da defesa que salvaguardava o indivíduo de abusos governamentais, passamos a
regrar o indivíduo mesmo e suas relações particulares, até seus afetos.
Restamos sob regras jurídicas na casa e até na cama. Veja-se:
Podemos,
ser definidos de muitos modos. Delimitemo-nos, primeiro, como um complexo
bioquímico. Um complexo bioquímico que se recompõe a si mesmo quando sofre alterações
no seu estado emocional, adaptando-se.
Ou
talvez seja o contrário: bem podemos nos ver como um complexo bioquímico que,
em sendo provocado por determinadas situações externas, reage, alterando-se em
sua condição, afetando o seu estado emocional.
Suponho
que somos uma e outra coisa em contínua afetação recíproca: um complexo
bioquímico variável e uma condição emocional instável. Esses dois estados
interagiriam permanentemente entre si e com o meio ambiente.
Como
estado emocional todos nos admitimos. Temos as emoções em conta elevada, como
se fossem um apanágio, um valor definidor da condição humana: quem não tem
emoções não tem sentimentos, não é humano.
Emoção
é coisa vista como algo do coração. Bem, a emoção manifesta-se organicamente,
no corpo. É que temos essa herança platônica, acredita-se na dualidade corpo e
mente. Todavia, somos unidade: um corpo-que-pensa.
Somos
uma complexidade ambulante contida num espaço organizado que se chama corpo.
Essa complexidade move-se, pensa (algumas pensam-se), sente, emociona-se,
reage, ama. Aliás, amor é emoção, ou é química?
O
amor relacional é uma emoção que objetifica alguém. Estamos tomados de emoção
amorosa quando desejamos ansiosamente outra pessoa e a fazemos objeto desse
sentimento. Nós a queremos com ímpetos possessivos.
Esse
querer altera o complexo bioquímico que somos. Ou alterações no complexo
bioquímico que somos produz esse querer. Ou as duas são coisa única. Ou ambas
se desencadeiam simultaneamente, “dialeticamente”.
De
toda sorte, se o lance acontece, acontece oxitocina. Ou acontece oxitocina,
causando o lance. Vale saber: oxitocina é um hormônio que se adiciona ao
complexo bioquímico enquanto perdura o amor. Ou vice-versa.
Então,
sob oxitocina, já não comandamos muito nossa vontade. O amor nos irracionalizaria.
Em estado de amor, pois, ou estamos tomados de emoção, ou estamos tomados por
um hormônio. É questão não resolvida.
Não
sou bioquímico, mas se vale um “causo” que me foi contado, narro-o: a mulher
percebeu que o “seu” homem perdeu o interesse. O médico recomendou,
providenciaram uma injeção de oxitocina. O amor voltou.
Voltou,
mas sumiu em breve tempo. Ou mais injeção, ou nada. O casal foi sensato. Cada
parte se foi da outra. Acontece que muitas vezes acaba a vontade “interna” de
um casal, e se despertam vontades por “externos”.
Vontade
por “externos” é normal, mas os casais a sacrificam pelo que chamam de
fidelidade amorosa, o que denomino monogamia, porque não há monotesão. A
reciprocidade só se estende se houver oxitocina circulando.
Muitas
vezes, com pouca oxitocina (desejo escasso), mas com a ajuda de tadalafila o
episódio vai. Se não houver vontade, a sildenafila (mero eretor) faz o homem
pegar no tranco. A mulher, se quiser, “concede”.
Nessas
alturas as partes amorosas já estão se tolerando. Alguns o fazem em nome de
valores relevantes (filhos, companhia terna, bens, aparência social etc.).
Outros se aturam numa nutrição doentia de ódio.
Ódio
também é hormônio. Ou o hormônio gera o ódio, ou o ódio gera o hormônio. A
relação é rancor, cortisol, estresse, mas não sei a ordem dos acontecimentos.
Sei que isso mantém a relação afetiva (ódio é afeto).
Filósofos
pensaram o amor, divagaram sobre ele. A bioquímica e a endocrinologia o
investigam. As religiões o enquadraram, constrangendo corpos. Ambições
jurídicas deram contornos normatizados à relação amorosa.
As
dificuldades do Direito para tutelar o amor, porém, estão às vistas. As normas
mal resolvem suas violências derradeiras. Nos processos que findam relações as
partes usualmente se insultam a si e ao seu contrato nupcial.
É impraticável dar molde jurídico às coisas do querer. É insensatez buscar garantia legal para a relação amorosa. A sua legalização burocratizou o afeto, circunscreveu o sexo, contratou o tesão. O corpo-eu vai desobedecer.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário