Povo Paumari adota o manejo sustentável da espécie
como estratégia para fortalecer a vigilância, gerar renda e segurança alimentar
nos territóriosAdriano Gambarini
“As crianças não conheciam mais o pirarucu”, lembra
Maria do Rosário Paumari, referindo-se a um passado não tão distante, no qual
as três terras indígenas de seu povo, no rio Tapauá, sul do Amazonas, eram
constantemente invadidas por barcos pesqueiros de grande porte, que estavam
tornando escassas o pirarucu e outras espécies de peixes e quelônios. Essa
realidade começou a mudar quando os indígenas iniciaram o manejo sustentável e
comunitário de pirarucu. Em dez anos de pesca sustentável da espécie,
comemorados em 2022, as comunidades geraram uma receita bruta de quase 1,5
milhão de reais com a atividade, que recuperou a população de pirarucu,
fortaleceu a vigilância dos territórios, garante a segurança alimentar e ajuda
a conservar milhares de hectares de floresta.
Da escassez à abundância
Maior peixe de escamas de água doce do mundo, o
pirarucu pode chegar a duzentos quilos, e três metros de comprimento. Sua carne
é muito apreciada nos estados do norte do Brasil, e, por isso, a espécie já
esteve próxima da extinção. Em 1996, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) proibiu a pesca do pirarucu no
Amazonas, permitindo a captura do peixe apenas no âmbito de iniciativas de
manejo sustentável de pirarucu.
Hoje, essas iniciativas são responsáveis pela
recuperação do pirarucu, e de outras espécies de peixes, em áreas protegidas do
estado. Os Paumari foram um dos percursores a implementar o manejo sustentável
de pirarucu em terras indígenas. Desde 2009, eles intensificaram a vigilância
dos lagos, e passaram a monitorar os estoques de pirarucu anualmente.
Foram necessários cinco anos de restrição da pesca
no território para que a população de pirarucu começasse a se recuperar. Só
após esse período, em 2013, foi realizada a primeira pesca sustentável. Todo
ano, o Ibama permite que as comunidades que desenvolvem o manejo sustentável
pesquem uma cota de até 30% dos pirarucus adultos contados. Podem ser
capturados e comercializados apenas indivíduos acima de 1,5 metros – o tamanho
indica que o peixe já está na fase adulta e que já foi capaz de se reproduzir.
A pesca dos chamados bodegos, ou pirarucus juvenis, é proibida, porque neste
estágio os peixes ainda não estão maduros para a reprodução. Com a proteção dos
lagos e a regulação da pesca, os Paumari aumentaram em mais de 600% a população
de pirarucu em seu território desde a primeira contagem, em 2009. “Ontem vimos
pirarucus boiando no rio Tapauá, o que não acontecia há muito tempo. Isso
significa que os lagos estão cheios, porque os peixes estão saindo dos lagos
para o leito do rio” celebrou Sara Paumari, liderança pioneira do manejo.
Vigilância fortalecida
Um dos primeiros passos para a implementação de uma
iniciativa de manejo sustentável é o fortalecimento da organização coletiva das
comunidades para cuidarem da biodiversidade de seus territórios, seja pela
vigilância, que evita invasores e atividades predatórias, seja pela construção
de acordos coletivos para o uso sustentável dos recursos. “A pesca predatória
estava causando escassez de peixes, que são fundamentais para a subsistência e
para a cultura paumari. Apresentamos uma alternativa que permitiria garantir a
qualidade de vida das futuras gerações, e o povo trabalhou junto na abertura
desse novo caminho. Hoje, o manejo ajuda a conservar a biodiversidade nas
terras indígenas, e é uma fonte de renda sustentável”, afirma Gustavo Silveira,
coordenador técnico da Operação Amazônia Nativa - OPAN, que, por meio do
projeto Raízes do Purus, patrocinado pela Petrobras, apoia os Paumari desde
2013.
Atualmente, os Paumari têm sete bases flutuantes
posicionadas em pontos estratégicos dos territórios, onde costuma haver
invasões. “Quando os rios começam a secar, posicionamos as bases e vigiamos as
entradas de lagos e igarapés vinte e quatro horas por dia. Fora esse período
mais intenso de vigilância, fazemos quatro rondas por todo os pontos
vulneráveis das terras indígenas em diferentes épocas do ano”, explica
Francisco Paumari, coordenador do manejo sustentável de pirarucu do povo. O
sistema de vigilância tem surtido efeito na inibição das invasões, mas este
continua sendo um problema enfrentado cotidianamente pelas comunidades.
“Eles ficam de olho na nossa rotina, e quando vamos
para reuniões, aproveitam para invadir para pegar quelônios e pirarucus. Por
isso, mesmo durante a pesca, as equipes precisam estar de plantão”, comenta
Margarida Paumari, do conselho de lideranças da Associação Indígena do Povo da
Água (AIPA), que representa as comunidades das três terras indígenas no rio
Tapauá, e é fruto da organização coletiva promovida pelo manejo. Nesse
contexto, apontam os Paumari, é fundamental contar com o apoio dos órgãos
responsáveis pela fiscalização de áreas protegidas, que podem efetivamente
expulsar os invasores. “A gente pede para os invasores saírem, explicamos que
não podem pescar no nosso território. Mas alguns ignoram, e ficam contrariados.
É importante que a gente tenha o apoio das autoridades”, relata Maria do
Rosário.
Trabalho árduo
Quando se trata de manejo sustentável de pirarucu,
não é apenas o peixe, conhecido como gigante amazônico, que impressiona.
Durante a pesca, que dura em média três semanas, as comunidades se dividem em
equipes que trabalham vinte e quatro hora por dia pescando, transportando e
tratando o peixe, além de outras tarefas, como preparo das refeições e lavagem
dos uniformes. São necessárias 46 toneladas de gelo para refrigerar o pirarucu
entre a pesca e a sua chegada na cidade de Manacapuru, onde fica o frigorífico
que processa e embala o pescado. Esse percurso é feito de barco, e leva, em
média, quatro dias.
Em 2012, foram contados 448 pirarucus adultos, e a
cota autorizada pelo Ibama foi de 50 indivíduos, totalizando três toneladas de
peixe. Em 2021, foram contados 2995 pirarucus adultos, resultando em uma cota
de 650 indivíduos, e mais de 36 toneladas de proteína animal de alta qualidade
comercializadas por meio da AIPA para a Associação dos Produtores Rurais de
Carauari (ASPROC), que coordena um arranjo comercial justo e coletivo de
pirarucu de manejo sustentável que reúne associações de base comunitárias
indígenas e ribeirinhas que realizam o manejo em seus territórios. O grupo
criou uma marca coletiva chamada Gosto da Amazônia, para vender o pirarucu em
São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Recife.
Coletivamente, os Paumari decidiram que 30% da
renda gerada pela comercialização do peixe seria destinada ao caixa da AIPA.
Este recurso é investido na vigilância do território, e em melhorias na
estrutura usada na pesca, além de compor um fundo de capital de giro para as
pescas futuras. Os 70% restantes, são divididos entre as pessoas que participam
do manejo, por meio de um sistema de pontos, que são acumulados pelas horas de
trabalho.
Com o apoio do Raízes do Purus, e de outros
projetos realizados pela OPAN, os Paumari vem se capacitando progressiva e
continuamente para a gestão de sua associação e para os processos relacionados
ao manejo e à pesca, e conseguiram importantes avanços na estrutura de que
dispõem para essas atividades, em especial a aquisição de flutuantes destinados
à vigilância e ao pré-beneficiamento do pirarucu. Este último tem mesas de
inox, um guincho para suspender e mover o peixe, e mangueiras com água tratada,
usada na limpeza do pirarucu.
Entre os Paumari, o orgulho é o sentimento que
prevalece quando o assunto é manejo sustentável de pirarucu. “A gente fica
muito alegre com a fartura não só de pirarucu, mas de outros peixes e caças, no
nosso território e com a qualidade da estrutura que conquistamos para o manejo.
É uma responsabilidade dos jovens continuarem nosso trabalho, porque estamos
garantindo a qualidade de vida das atuais e das futuras gerações”, ressalta
Nilzo Paumari.
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