Estudei no colégio militar de Fortaleza, entre 1975 e 1981. Antes, fiz o Fundamental I na escola municipal Jenny Gomes, no bairro Aerolândia. A mudança de uma escola para a outra foi parecida com a sensação que hoje tenho ao tirar um sapato de festa, depois de horas em pé. Poucas vezes repeti a alegria de ver meu nome na lista dos aprovados. O colégio militar, para um filho de sargento da aeronáutica e de uma dona de casa, era um luxo que poucos alcançavam, pois o número de vagas era pequeno e a concorrência enorme. No meu ano de ingresso, éramos 23 alunos por vaga. Com 11 anos de idade foi uma experiência e tanto e, devo dizer, nada agradável.
Minha experiência no colégio militar divide-se em
duas partes claras e distintas. A parte formadora foi resultado da excelência
de vários professores, da biblioteca enorme, dos espaços verdes (havia até um
minizoológico dentro da escola), do ensino integral e dos colegas que me
ajudaram muito a conviver e superar as dificuldades. A parte deformadora,
resultado da disciplina excessiva, das punições desnecessárias, dos exercícios
repetitivos, sem criatividade, e das regras bobas como o corte de cabelo, os
sapatos e fivelas dos cintos brilhantes, e do medo de contrariar as regras
bobas, cujo grau de exigência variava de comandante para comandante e, muitas
vezes, de dia para dia, dependendo do humor dos que mandavam em nós.
A parte produtiva e formadora da minha experiência
com o colégio militar foi resultado daquilo que é próprio ou deveria ser
próprio em uma escola: profissionais adequados, ambiente planejado,
laboratórios, materiais modernos, biblioteca atualizada, poucos alunos na sala,
carga horária compatível com as exigências de aprendizado. E aí a conclusão
óbvia: se todas as escolas públicas tivessem uma estrutura como a que eu tive
no colégio militar, a educação no Brasil seria muito diferente. Pobre Jenny
Gomes, a escola municipal que eu frequentei até a quarta série, nem dicionário
tinha. Uma tristeza, apesar dos esforços dos professores em compensar a falta de
condições adequadas e o excesso de alunos e alunas. Logo, o colégio militar era
muito bom - não por ser um colégio militar, mas por, principalmente, ser um
colégio com muitos recursos.
Meu melhor professor, nesse período , foi um major
do Exército, professor Albuquerque. Até hoje lembro dele e de como, graças a
ele, tive contato com a Literatura e com muitos dos segredos da Língua
Portuguesa. Ele era um homem gentil e muito atento com os alunos que mostravam
alguma vocação, sempre estimulando, ouvindo, oferecendo mais leituras
desafiadoras. Com ele, conheci a personagem Baleia, o sanatório de Simão
Bacamarte e o cortiço de Bertoleza. Ainda hoje lembro, com emoção, a indicação
de um livro enorme que ele me fez, dizendo: “sei que você já é capaz dessas leituras
de maior fôlego”, entregando-me uma edição de Vinhas da Ira.
Hoje, acompanho pesaroso o apoio de muitos ao
projeto de escolas cívico-militares, o discurso de que é preciso resgatar a
disciplina nas escolas, os valores patrióticos e outras coisas mais, como se o
benefício da escola fosse a disciplina, que é o poder dado a algum adulto para
calar as crianças e os jovens, quando na verdade o que de fato gera aprendizado
é a qualidade dos adultos em nos ouvir e depois falar para que os ouçamos,
oferecendo-nos coisas com cuidado e carinho e não impondo-nos como quem sabe
que não é bom e só com rudeza poderá ter sucesso.
Lembro-me agora do professor Teixeira, já avançado
nos anos, pequenino e enrugado, que nos dava aulas de História no colégio
militar. Civil, ia com um jaleco branco que se perdia bem abaixo de seus
joelhos. Lembro-me que muitos meninos riam do jeito frágil e desconcertado
dele. Mas bastaram poucas semanas para todos adorarem o professor Teixeira,
pela narrativa maravilhosa de suas aulas, pela forma sempre educada com que se
dirigia a cada um de nós, pela coerência de suas atitudes, pela compreensão por
nossas falhas de jovens imberbes, imaturos. Ele era rigoroso, coerente e
dedicado. Não tínhamos medo dele, porque o medo não educa. O medo só serve para
nos afastar do mundo.
Essas são as lembranças que tenho do colégio
militar, um período muito bom da minha vida, com exceção da parte na qual
alguns imaginaram que poderiam me ensinar como quem quer ensinar pássaros a
voar. Se as pessoas entendessem que educar é ouvir e estimular as pessoas
a serem o que elas são, e não o que os adultos querem que elas sejam, seríamos
um outro país. Major Albuquerque, professor Teixeira, os senhores entenderam
isso. Não por serem militares ou serem civis, mas por serem adultos capazes de
entender a obrigação dos adultos com os mais jovens.
Daniel Medeiros - doutor
em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário