A relação conjugal, o cotidiano de um par amoroso forma cumplicidades, cria segredos, inventa dizeres só seus. Também mostra o avesso de cada qual e suprime inibições. Após algum tempo, segundo me contam, na intimidade de um casal quase tudo está exposto por um diante do outro.
Não se trata de perder a vergonha.
Parece que a vergonha perde o sentido. Ora, vergonha é falta de confiança em si
ou escrúpulo diante do outro, o que leva à repressão de grandes e pequenas
vontades. O cotidiano vai dando jeito nessas coisas. Num dia atos contidos;
noutro tudo é trivial.
De fato, o dia a dia vai produzindo uma
moralidade doméstica, com códigos para compreensão e uso do casal. Nessa
moralidade caseira dia a dia se vai diluindo a moralidade individual das partes
que gozam de intimidade. As partes se sabem, com tudo o que isso tem de bom e
mau.
Entre a porta da sala e a da cozinha há
mais segredos do que entre o céu e a terra. Esses segredos, claro, são para os
de fora, que dentro de casa basta prestar atenção aos detalhes que uma parte saberá
o que quiser e o que não quiser saber da outra. Jeitinhos e bardas falam por
si.
Cada parte está exposta à outra de
muitos modos, por muitas vezes, por muito tempo. A moral individual aberta é
exposição plena. E mais do que a moral, de tanto se expor, expõe-se, também, a
compostura dos modos. A correção de maneiras vai recebendo licenças até o
completo abando.
Não demora muito e se abandona a
barriga, a barba, a depilação, a tampa do bacio, os gazes, as vestes, o
palavreado. Fica-se, e o que é pior, com toda a licença para ficar, relaxado.
Cada parte desavista o descuido da outra para poder também se descuidar. A
coisa desanda em desinteresse.
Exibir-se no melhor de si é coisa do
namoro, obsoleta estratégia de sedução. Realizado o encanto, desanda o amor
próprio; a vaidade desvia-se em desapreço esculachado. E não é por menosprezo
ou desafeição; é por quedar-se desatento de cuidar e de cuidar-se. É desmazelo
e só.
Não sou de conselhos, mas recomendei a
uma amiga: viver com alguém? Mantenha o nível. Se desenhar expectativa alta,
sustente a coexistência elevada. A vulgarização do comportamento no contubérnio
devasta a sensação do belo, do amoroso, da graça de coexistir. Acaba o tesão.
Não há tesão que resista à estética do
desapaixonado, inclusive por si próprio. Se o olhar-se no espelho já não acorda
Narciso, não acorda mais nada. Ninguém se interessa pelo olhar do outro se não
se interessa por olhar-se. Quero que o outro aprecie o que eu aprecio em mim.
Amigo meu segredou-me um causo de
declínio de intimidade. Não era briga, o casal só não se curtia. Ele não
escanhoava o rosto; ela deixou de acarinhá-lo. Ela relaxou os pelos; ele largou
de afagá-la. Já ninguém passeava a mão pelo corpo de ninguém. Morreu-lhes o
gosto.
Enfim, era triste: a coisa ia de ruim
para pior. Perdurava o silêncio, a tv ainda salvava a situação. O problema,
aliás, agravou-se exatamente por causa disso: a televisão. O filme tinha
rapazes bonitos e gestos carinhosos. Havia sexo. Ela, tocada pelas cenas,
tomou-se de vontade de namorar.
A transa ia boa, mas, aí, o rosto dela:
olhos fechados e um sorriso gostoso que há tempos não era assim. Ele encheu-se
de pensamentos. Não parou enquanto pensava, mas não dava para não pensar: não
era com ele. Ela não estava com ele. Ele a conhecia bem, sabia que aquele jeito
entregue, sem pressa, era qualquer coisa que não era transar com ele.
Para, não para, falou: abra os olhos. Ela nem se mexeu;
ou não ouviu, ou desentendeu. Repetiu. Ela olhou, mas não desmanchou o sorriso.
Ele foi macho: ou é comigo, ou não é com ninguém; fica de olho aberto, tem que
me ver. Ela ficou, mas, olhos no teto, passeou com a imaginação. Meu amigo me
disse: um com o outro, foi a última vez.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicólogo e Jornalista.
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