Pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Butantan, apoiados pela FAPESP, identificaram no veneno de uma serpente e de uma aranha do Norte do Brasil uma série de peptídeos – pequenos fragmentos de proteínas – com potencial farmacológico para combater condições cardíacas, bactérias, fungos, vírus e câncer, entre outros.
O estudo do veneno da serpente, a
jararaca-do-norte (Bothrops atrox), foi publicado no Journal of Venomous Animals and Toxins including Tropical Diseases.
A espécie é responsável pela maior parte dos acidentes ofídicos na região Norte
do país.
A aranha é uma espécie de tarântula
também da região amazônica, a Acanthoscurria rondoniae.
O trabalho sobre suas toxinas foi publicado na
revista Frontiers in Pharmacology.
“Encontramos 105 peptídeos [pequenos
fragmentos de proteína] no veneno da jararaca-do-norte e 84 novas toxinas
expressas nas glândulas de veneno da aranha, muito pouco estudada até hoje. Há
vários estudos sobre a espécie de serpente, mas não nesse nível de detalhe dos
peptídeos, que são moléculas pequenas, com poucos aminoácidos, o que facilita
sintetizarmos aquelas que parecerem mais interessantes”, explica Alexandre Tashima,
professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo
(EPM-Unifesp) e coordenador dos estudos, que integram projeto apoiado pela FAPESP.
Venenos de animais são conhecidos pelo
grande potencial biotecnológico. As serpentes do gênero Bothrops, por exemplo, possuem toxinas ricas nos
chamados peptídeos potenciadores da bradicinina, que no passado originaram
medicamentos para controle da pressão arterial, como o captopril, advindo de
peptídeos da jararaca (Bothrops jararaca).
A empresa norte-americana Vestaron,
por exemplo, transformou o veneno de uma espécie de aracnídeo australiana (Hadronyche versuta) em um biopesticida, que paralisa
insetos que prejudicam lavouras sem afetar abelhas, aves e mamíferos.
No estudo
atual com a jararaca-do-norte, os pesquisadores buscaram diferenciar o veneno
das fêmeas e dos machos, analisando quatro indivíduos de cada sexo. A hipótese
era de que as fêmeas poderiam ter diferenças na composição do veneno, uma vez
que são maiores e que estudos já mostraram que a peçonha é mais potente, talvez
por razões evolutivas.
“Dependendo
do local onde vivem e das presas que têm à disposição, as serpentes podem ter
diferenças na composição do veneno, mesmo dentro de uma mesma espécie. No caso
das fêmeas, uma vez que elas precisam proteger os ovos, pode ser que isso tenha
favorecido uma seleção de formas mais potentes das toxinas”, diz Tashima.
Confirmando
a hipótese, o levantamento – usando a técnica de espectroscopia de massas –
mostrou que as fêmeas têm uma maior abundância de desintegrinas, peptídeos
conhecidos por se ligarem a proteínas presentes nas plaquetas do sangue. Uma
hipótese levantada pelos pesquisadores é que as desintegrinas das jararacas
fêmeas possam interferir ainda mais na coagulação sanguínea do que as dos
machos. No entanto, ainda é preciso testar essa possibilidade. Uma das novas
desintegrinas foi caracterizada e nomeada como BATXDIS1.
O estudo
mostrou ainda, em machos e fêmeas, uma diversidade de peptídeos potenciadores
da bradicinina (BPP, na sigla em inglês), além dos já conhecidos em outras
espécies. Seis dos 14 BPPs encontrados são novas moléculas, que podem ser
estudadas futuramente – podendo dar origem a novas classes de fármacos para hipertensão
arterial, por exemplo.
Tarântula de Rondônia
Enquanto
as serpentes têm grandes glândulas de veneno, que produzem uma quantidade
suficiente para fazer caracterizações e mesmo para testar sua ação, aranhas
produzem quantidades pequenas de peçonha. Nesse sentido, as ferramentas
computacionais recentes facilitaram bastante seu estudo.
Depois de caracterizar o veneno
da A. rondoniae no laboratório por diversas técnicas,
os pesquisadores submeteram as sequências obtidas a bancos de dados gratuitos.
As ferramentas computacionais fazem comparações com o que já foi caracterizado
e está registrado nesses repositórios.
Entre as
84 toxinas analisadas, foram encontradas semelhanças com outras que têm efeitos
bactericidas, anticâncer, antifúngicos e antivirais. Foram identificados sete
novos peptídeos ricos em cisteína (CRP, na sigla em inglês). Os CRPs são comuns
em toxinas de aranhas e têm conhecidos efeitos em canais iônicos e contra
bactérias. Além deles, um outro peptídeo tem potencial não apenas bactericida como
antifúngico.
Alguns dos
CRPs têm ainda grande semelhança com outros peptídeos, de outros animais, que
já mostraram resultados promissores contra vírus. Dois CRPs e quatro peptídeos
menores apresentaram também potencial contra células tumorais.
Os pesquisadores
ressaltam que os resultados são apenas indicativos de atividades biológicas
potenciais. Para confirmar a ação, trabalhos experimentais deverão ser feitos
em modelos celulares e animais, o próximo passo da pesquisa.
“Esse
estudo mostra ainda como conhecemos pouco da nossa biodiversidade, a maior do
mundo, tanto do ponto de vista biológico e ecológico, quanto farmacológico e
biotecnológico. Moléculas como essas podem ser exploradas de forma sustentável.
Estamos perdendo muitas espécies sem nem mesmo conhecê-las”, encerra Tashima.
O artigo Comparative gender peptidomics of Bothrops atrox venoms: are there
differences between them?, de Adriana Simizo, Eduardo S. Kitano,
Sávio S. Sant’Anna, Kathleen Fernandes Grego, Anita Mitico Tanaka-Azevedo e
Alexandre K. Tashima, pode ser lido em: http://dx.doi.org/10.1590/1678-9199-jvatitd-2020-0055.
O artigo A Multiomics Approach Unravels New Toxins With Possible In Silico
Antimicrobial, Antiviral, and Antitumoral Activities in the Venom of
Acanthoscurria rondoniae, de Guilherme A. Câmara, Milton Y.
Nishiyama-Júnior, Eduardo S. Kitano, Ursula C. Oliveira, Pedro I. da Silva
Júnior, Inácio L. Junqueira-de-Azevedo e Alexandre K. Tashima, pode ser lido
em: www.frontiersin.org/articles/10.3389/fphar.2020.01075/full.
André Julião
Agência
FAPESP
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