O Poder Judiciário oferece técnicas restaurativas de solução de conflito em salas de aula para promover a paz nos ambientes escolares do País e evitar que novos processos judiciais nasçam desses conflitos.
Comarcas
em diversos Estados já aplicam a mediação e os chamados círculos restaurativos
em conflitos escolares, práticas que estão em conformidade com a Política
Nacional de Resolução de Conflitos no Judiciário, instituída pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução
n. 125/2010, e com a Resolução
n. 225/2016, que contém diretrizes para implementação e difusão da Justiça
Restaurativa no Poder Judiciário.
Em
Vila Velha/ES, servidores formados pelos cursos de instrução em mediação do CNJ
capacitaram professores e conselheiros tutelares da cidade, além de alunos da
rede pública de ensino, nas técnicas da comunicação pacificadora. O curso,
voluntário, começou no ano passado e contou com 180 alunos. Até outubro deste
ano, a expectativa é que 300 jovens sejam treinados em mediação escolar. O
trabalho, segundo a juíza Patrícia Pereira Neves, da 1ª Vara de Infância e
Juventude de Vila Velha (ES), tem provocado mudança de comportamento entre os
jovens.
“Havia
uma sala que, de manhã, recebia uma turma de 5ª série, com crianças entre 10 e
12 anos. No turno da tarde, a mesma sala era utilizada por alunos mais velhos,
que rabiscavam as mesas, pichavam as portas e frequentemente rasgavam os
trabalhos feitos pelas crianças. Pedimos ajuda aos mediadores e eles foram
conversar com a turma vespertina. Contaram da tristeza das crianças que
dividiam a sala com eles e a resposta não poderia ter sido melhor: a turma não
só pediu desculpas à meninada, como ajudou a limpar os objetos e refizeram os
cartazes estragados”, disse a juíza. A reação positiva dos jovens foi uma
surpresa para as crianças que, no dia seguinte, gravaram uma música de
agradecimento.
“Foi
uma situação especial, de respeito entre todos, e que revela o poder da
mediação frente a um conflito”, disse Patrícia Pereira Neves, que tem buscado
utilizar ações da Justiça Restaurativa mesmo em atos infracionais mais graves
que chegam à Justiça, como tráfico de drogas, posse de armas e roubos. “O
alcance é maior e mais profundo que apenas a resolução em nível processual”,
diz ela.
Professor-mediador
A
Justiça Restaurativa em âmbito escolar começou a ser testada em São Paulo, no
Rio Grande do Sul e no Distrito Federal ainda em 2005. Na época, foi criada a
figura do professor-mediador, cuja função, exclusivamente, era cuidar da boa
convivência de todos no ambiente escolar. As ações nesse sentido, no entanto,
não chegaram a ser expandidas de modo homogêneo para o resto do País.
Em
São Paulo, depois de algum tempo suspenso, o trabalho recomeçou em 2013. Cerca
de 50 casos já foram resolvidos por meio da utilização da técnica, que propõe
um olhar humanizado e corresponsável entre os envolvidos nos
conflitos. Atualmente, há vários núcleos de Justiça Restaurativa
implementando ações em parcerias com o sistema educacional paulista.
Segundo
o juiz Marcelo Samosa, titular da Vara do Juizado Especial Cível e Criminal e
da Infância e Juventude da comarca de Tatuí/SP, o enfoque nos círculos
restaurativos conseguiu importantes vitórias na pacificação de crianças,
jovens, escolas e famílias. Além de eliminar o conflito, a técnica ajuda
os envolvidos a entenderem suas corresponsabilidades em relação aos fatos que
contribuíram para gerar o desentendimento. “É preciso lembrar que a
agressividade, muitas vezes, tem como origem a sensação de não pertencimento. E
quando vamos fundo nos sentimentos que geraram os conflitos, quase sempre a
visão muda. Os pais entendem os dois lados e a escola percebe sua
responsabilidade. É um trabalho que gera conexão e solidariedade”, diz Marcelo
Samosa.
Bullying e lesão corporal
O
magistrado relembra um caso em que o círculo restaurativo ajudou não só a
pacificar a relação de dois estudantes, como também contribuiu para ajudar a
família de um deles. O menino havia empurrado a colega causando uma fratura em
seu braço. Os relatos ouvidos durante o trabalho do círculo revelaram que o
menino vinha sofrendo bullying
da menina há meses. Na época da agressão, o pai do menino estava desempregado e
descontava sua frustração na família, de maneira agressiva e ingerindo
abusivamente bebidas alcoólicas.
A
técnica ajudou os pais a perceberem as falhas ocorridas nas atitudes dos dois
jovens; o colégio passou a trabalhar mais os conteúdos sobre paz e respeito
humano; e o juizado pediu ajuda de assistentes sociais para o pai do menino.
“As soluções foram encontradas de maneira conjunta e os dois alunos, que haviam
chegado brigados, com sentimento de culpa e vitimização equivocadas, saíram do
encontro falando de cultura de paz, juntos. Toda a comunidade foi envolvida e
se sentiu reparada”, diz Marcelo.
Círculo Restaurativo
A
técnica dura entre três e quatro horas, com todos os envolvidos no conflito
sentados em círculo. Ali, cada um tem um tempo para falar e ser ouvido por
todos. O procedimento se divide em três etapas: o pré-círculo (preparação
para o encontro com os participantes); o círculo, propriamente dito, e o
pós-círculo (fase de acompanhamento). O trabalho não visa apontar culpados ou
vítimas, mas fazer que os presentes entendam que suas ações afetam a si
próprios e aos outros e que são responsáveis por seus efeitos.
Na
1ª rodada, o facilitador estimula as pessoas a se apresentarem. Na 2ª rodada, o
facilitador coloca perguntas que permitam aos presentes falarem sobre os
valores que acreditam ser importantes para a sua vida. Na 3ª rodada, o
facilitador faz com que as pessoas contem alguma história sobre a sua vida.
As
perguntas servem para promover uma conexão da pessoa com a humanidade do outro.
Na 4ª rodada ocorrer abordagem do conflito em si. O facilitador pergunta o que
cada um sente em relação aos fatos apontados. Nesse momento a vítima expõe a
dor que sente; a comunidade (família, por exemplo) também coloca seus sentimentos.
Esse processo, segundo o juiz, auxilia o ofensor a refletir sobre o erro e
desconstruir suas desculpas. Na 5ª rodada há o trabalho de reparação dos danos.
O ofensor é convidado a apresentar um plano para reparar o dano que fez à
vítima, a si próprio e à comunidade. Três meses depois, há um pós-círculo, para
que seja confirmado que o acordo está sendo cumprido. Se não estiver, o
processo volta para a Justiça comum. Segundo o juiz, é raro o
descumprimento.
Justiça Restaurativa
A
Justiça Restaurativa é uma técnica de auxílio na solução de conflitos que tem
como foco a escuta das vítimas e dos ofensores. Ela tem sido utilizada em
diversos casos, inclusive na resolução de crimes contra a vida. A presidente do
CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, também
vislumbra na prática a possibilidade de recomposição das famílias,
especialmente em relação às situações que atingem as crianças e, a longo prazo,
na pacificação social.