Certa
polêmica tem sido gerada nos últimos dias pela forma como alguns líderes e
fiéis católicos têm pregado a abstinência de redes sociais ou outras
indulgências tecnológicas, como o What’s
App, no período da quaresma. Para muitos, trata-se de uma atitude
retrógrada e repressora, que priva as pessoas do acesso a algo não apenas
normal e inofensivo como também útil e indispensável, em nome de valores
abstratos e ultrapassados. Mas talvez a questão seja mais complexa.
A quaresma,
para quem não sabe, é uma temporada no calendário litúrgico cristão (católico,
e de outras denominações) que começa na quarta-feira de cinzas e vai até a
páscoa. O propósito da temporada é a preparação espiritual do fiel, por meio
pincipalmente de práticas como a oração, arrependimento e confissão,
penitência, obras de caridade e autonegação ou sacrifício (manifesto pelo jejum
ou abstinência de algo que dê alegria ou prazer ao fiel).
As práticas
religiosas da quaresma (assim como as práticas religiosas em geral) parecem
ser, para muitos, arcaicas e sem sentido. Para estas pessoas, dentre as
atividades da quaresma, apenas as obras de caridade parecem ter alguma razão de
ser. A oração talvez também retenha algum valor. Mas alguns aspectos da
quaresma parecem ser especialmente inaceitáveis para a cultura contemporânea.
Eu arrisco afirmar que o aspecto mais perturbador e ameaçador para a
mentalidade atual é o da autonegação, e é este que tem causado a comoção.
No mundo contemporâneo,
mesmo quando abraçamos ideais éticos e nobres, queremos fazê-lo de forma
independente de qualquer senso de dever, obrigação e, principalmente, de
sacrifício e negação de nossa satisfação pessoal. É o que o filósofo francês
Gilles Lipovetsky chama de “ética indolor” ou “ética pós-dever”.
Para muitos, a
abstenção das redes sociais tornou-se algo impensável. Elas são uma parte muito
forte e integral de nossas vidas hoje. Por isso, vários questionamentos têm
sido levantados contra os praticantes do “jejum das redes sociais”, como, por
exemplo: e se um filho nascer nesse período? Não poderemos divulgar? E quanto à
nossa interação sobre o que se passa no mundo? E por aí vai...
Mas podemos
também pensar em algumas respostas: As redes sociais realmente são tão
indispensáveis? Será que seu uso é sempre positivo? Precisamos realmente nos
posicionar sobre a mais recente polêmica? É necessário que participemos
diariamente de debates políticos e comportamentais intermináveis? É possível
viver sem divulgar todos os nossos grandes momentos na internet em tempo real?
Talvez a abstinência temporária das redes sociais não precise ser tratada como
uma perda tão significativa. Conheço casos (o meu, inclusive) em que o
nascimento de crianças não é divulgado nas redes sociais e, miraculosamente,
elas sobrevivem!
Sim, as redes
continuarão a ser parte das nossas vidas. Mas antes de condenarmos a
abstinência católica, pensemos se nossa submissão à cultura gerada pelo uso
desordenado das redes sociais realmente é tão indispensável. Sem dúvida,
existem extremismos e exageros na forma como alguns religiosos encaram a
questão. Mas nossa passividade acrítica em absorver tudo que nossa cultura nos
oferece também deve ser questionada. O que está em jogo, na verdade, é o entendimento
de qual é o papel das disciplinas religiosas em nossa vida. Um dos mais
importantes é o de questionar se os valores e práticas que acolhemos
mecanicamente são mesmo os que mais precisamos para viver bem.
Rodrigo Franklin - professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Presbiteriana Mackenzie e está disponível para entrevistas.