Bebês que passam por períodos de baixa oxigenação nos primeiros meses de
vida – decorrentes, por exemplo, de episódios de apneia durante o sono – tendem
a desenvolver problemas respiratórios e hipertensão arterial já na fase jovem e
ao longo da vida adulta.
Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) demonstraram,
pela primeira vez, que nesses casos o aumento da pressão arterial se dá devido
a uma desregulação no sistema nervoso autônomo – que funciona de modo
involuntário para controlar a pressão sanguínea, os batimentos cardíacos e a
respiração, entre outros fatores. O estudo, publicado na revista Sleep Research Society, foi feito em modelo animal e
demonstrou que o aumento da pressão arterial está associado a uma
hiperatividade dos neurônios do sistema nervoso simpático (o ramo do sistema
nervoso autônomo que é ativado em situações de estresse).
“Descobrimos que ratos que passaram por episódios de hipóxia
intermitente no período pós-natal apresentavam maior atividade neuronal na
parte final do tronco encefálico [bulbo] durante a vida jovem e adulta. Isso
provavelmente se dá devido a uma adaptação do cérebro decorrente do período de
baixa oxigenação durante uma fase crítica do desenvolvimento. Entre as
adaptações está o aumento da atividade do sistema nervoso autônomo simpático,
provavelmente por causa da maior expressão de uma proteína denominada fator
induzível por hipóxia [HIF-1α] em neurônios do bulbo”, conta Daniel Zoccal,
professor da Faculdade de Odontologia de Araraquara (FOAr-Unesp).
Segundo o
pesquisador, a maior expressão da proteína HIF-1α pelos neurônios do bulbo gera
uma série de alterações na leitura de outros genes que, dentre várias ações,
controlam a atividade celular. Como consequência, os neurônios com maior
expressão de HIF-1α apresentaram maior atividade, acarretando em vasos
sanguíneos de menor calibre e, portanto, maior pressão arterial. Esse fenômeno
corresponde ao que os cientistas chamam de epigenética, ou seja, modificações
bioquímicas nas células ocasionadas por estímulos ambientais que promovem a
ativação ou o silenciamento de genes sem provocar mudanças no genoma do
indivíduo.
Além de demonstrar pela primeira vez os mecanismos envolvidos na relação
entre episódios de baixa oxigenação na vida pós-natal e hipertensão na fase
jovem e adulta, o trabalho, apoiado pela
FAPESP, pode trazer desdobramentos clínicos importantes.
“Embora a hipertensão tenha uma prevalência alta – cerca de 30% da
população mundial –, sua origem ainda precisa ser mais bem compreendida. Sabe-se
apenas que há um risco associado a fatores como obesidade, sedentarismo,
problemas renais e consumo de sal, por exemplo. Com o achado, podemos
investigar novos tratamentos”, afirma Zoccal à Agência
FAPESP.
A
descoberta também joga luz sobre a importância dos primeiros anos de vida do
indivíduo para o desenvolvimento de doenças. “É preciso olhar com mais cuidado
para a respiração dos bebês até como uma forma de prevenir o desenvolvimento de
doença na vida adulta”, diz. Episódios de apneia em recém-nascidos podem
ocorrer com mais frequência em prematuros, quando o sistema nervoso central e o
sistema respiratório ainda não estão completamente maduros, ou em bebês com
hiperplasia de adenoide ou de amídalas, alguma deformidade anatômica ou
obesidade.
Para o pesquisador,
descrever todo o processo de como se dá a hipertensão arterial pela baixa
oxigenação no período pós-natal (até cerca dos dois anos de idade em humanos)
pode também auxiliar na busca de tratamento para aqueles pacientes que não
respondem bem aos medicamentos anti-hipertensivos – cerca de 20% dos pacientes
hipertensos.
Estudos
anteriores já haviam demonstrado que pacientes hipertensos, especialmente os
que não respondem a tratamento medicamentosos, têm um aumento da atividade
elétrica na interface entre os nervos simpáticos e os vasos sanguíneos. “Os
vasos sanguíneos desses indivíduos têm menor calibre, o que resulta no aumento
da pressão arterial”, diz.
Baixa
oxigenação
No estudo,
os pesquisadores induziram a hipóxia em ratos durante os dez primeiros dias de
vida. Nesse período, os animais passaram por episódios de hipóxia de curta
duração, com a redução do oxigênio de 21% para 6% durante 30 segundos. Isso
aconteceu a cada nove minutos, durante o período de sono dos animais.
A
simulação gerava seis episódios de apneia do sono por hora, o que equivale a um
caso de apneia do sono moderada. “Na clínica, existem casos de apneia severa em
que o paciente chega a experiências de 30 ou até 60 episódios por hora”,
explica o pesquisador.
Depois de
duas semanas, as simulações realizadas ao longo de oito horas por dia cessaram
e os animais passaram a respirar normalmente. Quando os animais completaram 40
e 90 dias de vida – o que em humanos seria comparável a 13-16 e 40-50 anos
respectivamente –, os pesquisadores avaliaram parâmetros fisiológicos como
pressão arterial e frequência cardíaca.
Em ambas
as idades, os ratos que passaram por períodos de hipóxia intermitente na fase
pós-natal apresentaram um aumento consistente da pressão arterial – entre 10 e
20 milímetros de mercúrio (mmHg ) acima do grupo-controle. De acordo com os
resultados, a média da pressão arterial em ratos jovens foi de 84±7 mmHg no
grupo-controle, enquanto no grupo que passou por hipóxia intermitente foi de
95±5 mmHg. Já a média para os animais adultos ficou em 103±10 mmHg para o
grupo-controle e 121±9 mmHg para o grupo que passou por episódios de baixa
oxigenação. Vale destacar que os índices de pressão arterial tanto em roedores
quanto em humanos são semelhantes.
“No
estudo, não avaliamos quando os animais se tornam hipertensos, apenas
verificamos que na fase jovem os ratos já apresentavam alterações relacionadas
à pressão arterial e, na fase adulta, estavam hipertensos”, explica o
pesquisador.
Depois de
concluir que a hipóxia intermitente gerava aumento de pressão arterial nos
animais, os pesquisadores foram investigar a contribuição do sistema nervoso
simpático nesse processo.
Vale
lembrar que o sistema nervoso autônomo é dividido em duas partes: o sistema
simpático e o parassimpático. De forma geral, o sistema simpático é responsável
pelas alterações no organismo em situações de alerta, preparando o organismo
para enfrentar ou fugir de uma ameaça. Envolve, portanto, maior gasto de
energia. Cabe a esse ramo aumentar a frequência cardíaca e a pressão arterial,
liberar adrenalina, dilatar os brônquios, dilatar as pupilas, aumentar a
transpiração. Já o sistema nervoso parassimpático normaliza o funcionamento dos
órgãos internos depois da situação de alerta.
Ao colocar
eletrodos em contato com os nervos simpáticos dos ratos jovens, os
pesquisadores observaram que os animais que passaram por hipóxia intermitente
apresentavam uma quantidade maior de impulsos elétricos trafegando pelos nervos
simpáticos em comparação com os animais que não passaram por episódios de baixa
oxigenação. Em roedores adultos, foi utilizada uma abordagem farmacológica que
obteve o mesmo resultado do estudo com ratos jovens.
“Utilizamos
uma droga que inibe as ações do sistema nervoso simpático e, dependendo da
resposta de queda da pressão arterial, foi possível inferir que a atividade
simpática estava aumentada”, diz.
Os
pesquisadores da Unesp também analisaram a atividade dos neurônios do bulbo,
uma região do cérebro que controla as funções vegetativas do corpo, como
batimento cardíaco, respiração e a atividade simpática para os vasos
sanguíneos.
“Focamos
nossa análise na superfície ventral do bulbo, região essencial para gerar a
atividade simpática e manter a pressão arterial em valores normais [em humanos
cerca de 12/8 mmHg]. E observamos que, entre os animais que tinham passado por
hipóxia intermitente pós-natal, existe uma maior taxa de disparo dos neurônios
nessa região. Isso mostrou uma disfunção nesse grupamento do bulbo, causada
pela exposição à hipóxia intermitente que mantém a atividade simpática
aumentada, elevando a pressão arterial”, explica.
Os
pesquisadores também observaram que, além de apresentarem maior atividade, os
neurônios do sistema nervoso simpático expressavam mais a proteína HIF-1α.
“Essa descoberta permitiu que associássemos todo esse processo a uma possível
causa epigenética", conta.
Zoccal
ressalta que a proteína HIF-1α foi objeto de estudo dos vencedores do Prêmio
Nobel de Medicina de 2019. Os laureados descobriram que, quando os níveis de
oxigênio estão baixos, a quantidade desse fator aumenta e induz adaptações
celulares que garantem a sobrevivência das células e do organismo durante
condições de hipóxia. Por outro lado, a concentração de HIF-1α diminui quando
os níveis de oxigênio estão normais.
O estudo
focou nos efeitos da hipóxia intermitente pós-natal sobre a pressão arterial
decorrentes de uma disfunção no sistema nervoso simpático. No entanto, sabe-se
que alterações nesse sistema podem acarretar outras modificações. Isso porque a
atividade simpática controla muitas funções do organismo, entre elas a
temperatura corporal e, consequentemente, o metabolismo.
“Em outro
estudo que publicamos, usando o mesmo modelo experimental, notamos que os
animais que passam pela hipóxia apresentavam menor peso que o do
grupo-controle, o que pode ser uma consequência do aumento da atividade
simpática. Também observamos que esses animais passaram a apresentar
irregularidades respiratórias, com um padrão fora do comum de aceleração e
desaceleração da respiração em repouso. Portanto, além de hipertensos, vimos
que os animais podem apresentar problemas respiratórios e prováveis alterações
metabólicas”, conclui.
O artigo Sympathetic dysregulation induced by postnatal
intermittent hypoxia pode ser lido em: https://academic.oup.com/sleep/advance-article-abstract/doi/10.1093/sleep/zsad055/7067763?redirectedFrom=fulltext.
E o estudo Postnatal intermittent hypoxia enhances
phrenic and reduces vagal upper airway motor activities in rats by epigenetic
mechanisms está disponível em: https://physoc.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1113/EP087928.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-associa-episodios-de-apneia-do-sono-em-bebes-a-maior-risco-de-hipertensao-na-vida-adulta/41466/
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