Gosto de escrever
crônicas. No entanto, raramente consigo pois a urgência e a arrogante
importância das pautas cotidianas consomem meu tempo. Hoje, não.
Aconteceu no centro de Porto Alegre, em
local inesperado e hora imprópria, proporcionado por uma única protagonista. E
duvido que a maior parte dos transeuntes tenha prestado qualquer atenção ao que
estava em curso.
A personagem cobria-se com andrajos. A
pele, envelhecida, visivelmente não se encontrava com água há muito tempo. Todo
seu aspecto, dos cabelos aos pés, dava a impressão de se tratar de pessoa
egressa de um sanatório para doentes mentais.
Sentada ao meio-fio, ignorando o mundo que fluía ao seu redor, com um
rasgado sorriso de felicidade, a mulher pintava as unhas dos pés descalços.
Foi um flash, um instante fugaz, colhido
pela retina enquanto o carro descia a movimentada rua. Mas nunca esquecerei a
imagem de alguém que perdeu tudo, inclusive a razão, sem perder a vaidade. A
mais bela metade da humanidade estava ali representada, num espetacular,
eloqüente e silencioso comício da feminilidade.
Pode parecer estranho, mas me senti, como
homem, homenageado por aquele gesto aparentemente tão impessoal e fútil quanto
deslocado. Mulher mãe, filha, esposa, namorada, amante. Mulher sadia ou
enferma; bem cuidada ou maltratada. Vaidosa, dengosa e valente. Não há no mundo
nada mais importante nem mais interessante do que a mulher.
Quantas lutas não encontraram lenitivo no
vazio daquela loucura? Quanto abandono, traição e combate desigual não a
conduziram ao precipício da demência? Mas a vaidade, mulheres que me lêem, a
tudo resistiu. Quantas pessoas não terão passado ali e visto nada além de uma
expressão da moléstia? E no entanto – insanos! – aquelas mãos sujas escreviam
nos pés encardidos, com pincel e esmalte, uma poesia de rara beleza.
Leitor fugaz daqueles versos eternos,
deixo aqui minha própria homenagem ao que eles expressam. E fique a pauta
política inteira para amanhã!
Percival Puggina - membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
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