Em artigo publicado na revista PLOS ONE, cientistas do Instituto Adolfo Lutz revelam que a quantidade de animais existentes em um determinado perímetro impacta o risco de transmissão da doença. E que áreas onde já ocorreram casos permanecem como locais de maior risco (foto: Patricia Matsumoto)
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A leishmaniose é um grupo de doenças infecciosas causadas por protozoários do gênero Leishmania que afeta humanos e animais. Um dos tipos mais graves é a leishmaniose visceral (LV), provocada – entre outras espécies – pela Leishmania infantum. E o principal reservatório desse parasita em hábitats domésticos é o cão de estimação.
Por isso, um grupo interdisciplinar de cientistas brasileiros resolveu avaliar o efeito da população canina e do ambiente domiciliar na manutenção de focos naturais para a transmissão de L. infantum. O estudo foi feito em Bauru, no interior de São Paulo, e os resultados foram recentemente publicados na revista PLOS ONE.
A equipe revelou que a quantidade de
cães existentes em um determinado perímetro impacta o risco de transmissão da
doença. “Quando há um animal apenas dentro de casa, o risco de transmissão
de L. infantum não é tão grande. Mas, conforme
aumenta o número de cães, o risco também cresce. Esse é um fator-chave para o
artigo: o número de cães; e o mesmo vale para o perímetro. Quando há dez cães
em um raio de 100 metros, o risco de transmissão ainda é baixo. Mas, quando
aumenta para 40 cães, esse número sobre drasticamente, mais de 700%”, diz Patrícia Sayuri Silvestre Matsumoto, geógrafa, pós-doutoranda no Centro de Parasitologia e Micologia do
Instituto Adolfo Lutz e primeira autora do artigo.
Os autores
coletaram 6.578 amostras de sangue de cães que vivem em 3.916 domicílios, de
novembro de 2019 a março de 2020. “Encontramos, na análise da amostra
sanguínea, uma taxa positiva para LV canina em 5,6% dos cães, enquanto para os
domicílios, de modo geral, a taxa de positividade foi de 8,7%. Essa é a
diferença que emerge quando separamos o que é amostra biológica e o que são
características que poderíamos chamar de culturais, ou socioeconômicas. Ou
seja: variáveis que podem estar na escala da casa, localmente modificando a
taxa de prevalência da doença”, explica a pesquisadora.
Outro dado surpreendente que o artigo
traz é que áreas que já tinham casos de leishmaniose visceral no passado
permanecem sendo locais de maior risco. “Se lá na frente eu encontro novamente
o parasita, a pergunta é: onde ele permaneceu naquele período em que não houve
cão infectado nem caso humano, já que ele depende do hospedeiro? O que acontece
nesse ambiente? É algo de residual que permanece?”, indaga o biólogo José Eduardo Tolezano, diretor técnico do Centro de Parasitologia e Micologia do Instituto
Adolfo Lutz e supervisor do trabalho.
A hipótese
considerada pelos cientistas é que o parasita permanece no local porque há ali
alguma condição favorável. “Por isso é importante investigar o domicílio.
Dentro da casa, os arredores, fazer uma leitura espacial, o que é característico
em volta, a presença ou não de matéria orgânica, água, vegetação; tudo isso
está na nossa investigação”, conta Tolezano.
Matsumoto
ressalta que muitas dessas áreas onde ocorrem casos de leishmaniose visceral
são ambientes periurbanos. “De vez em quando passa um gambá por ali, um
cachorro do mato, que poderia ter um papel importante na transmissão. Aliado a
isso, boa parte dos cães domésticos infectados é assintomática: os animais têm
diagnóstico positivo e permanecem sem sintomas clínicos. Podem estar cumprindo
um papel de repositório por anos ali no local.”
O estudo, feito em parceria com a
Secretaria de Saúde do Município de Bauru, foi apoiado pela FAPESP por meio de
dois projetos (19/22246-8 e 18/25889-4).
Transmissão
A leishmaniose é conhecida como doença focal, no sentido de que é preciso haver uma conjunção de fatores em um determinado local para seu aparecimento. No caso da leishmaniose visceral, a transmissão envolve reservatórios silvestres (canídeos e marsupiais) e urbanos (cão), além de vetores – no caso, o mosquito Lutzomyia longipalpis.
Segundo Tolezano, existem mais de 20 espécies de Leishmania e todas são parasitas de animais silvestres. “O ciclo original de circulação do protozoário é o ambiente silvestre. Já encontramos gambás infectados com a leishmania idêntica a essa que causa a forma visceral. Também encontramos no interior de primatas.”
Acontece que, em ambientes menos
urbanos, o mosquito pica o animal silvestre infectado e, depois, pode infectar
o cão doméstico. Este, por sua vez, passa a ser um reservatório. “Mas é preciso
que exista uma conjunção de fatores: o parasita que vai estar na natureza em
animais silvestres, o cão doméstico próximo que vai servir como hospedeiro da
espécie infantum, além de condições locais adequadas para que o
mosquito se desenvolva. Diferentemente do vetor da dengue, as formas imaturas
(larvas e pupas) do Lutzomyia longipalpis não
se desenvolvem em água parada, mas em solo úmido. Assim, locais em que há
matéria orgânica em decomposição são bons ambientes. Também deve haver
sombreamento para proteção do inseto adulto no caso de temperaturas extremas e,
claro, a presença de uma fonte sanguínea. Esse inseto se contamina ao picar
vertebrados infectados, principalmente caninos silvestres e raposas”, explica
Tolezano.
De acordo
com ele, o sentido de foco é importante porque se refere ao local que tem as
condições adequadas para a transmissão. “Se eu disser que em Bauru há
leishmaniose visceral, não significa que aconteça na cidade toda. Mas naqueles
locais que têm as condições ideais.” Bauru, até pouco tempo, era o principal
foco de casos humanos de LV, com população canina estimada entre 90 e 100 mil
cães.
Matsumoto
afirma que, no geral, o aspecto biológico se sobressai nos trabalhos publicados
sobre o tema. “Acontece que tem todo o entorno, um contexto. Nesse sentido, já
sabíamos que o cão era uma importante fonte de infecção. Quando nós examinamos
um cão infectado, encontramos o parasita na pele sã, no fígado, no baço, em
todos os órgãos. Ele tem uma carga de parasitas muito grande. Assim, o mosquito
pode se contaminar facilmente.”
Escala
De acordo
com Matsumoto, o grande diferencial do artigo é olhar para a escala da casa e,
dentro da casa, olhar para os cães. “A literatura trabalha com taxas globais:
para o município, para um bairro. Mas não aborda a escala da casa e a
importância das diferenças locais. Só que, dentro do ambiente urbano, a gente
encontra características diferentes e isso se reflete nas taxas de transmissão
diferentes entre os bairros. Por isso, é interessante a gente olhar para essa
população canina e para as diferenças entre os bairros.”
A geógrafa
explica que o grupo fez duas análises diferentes: uma para a casa, levando em
consideração a quantidade de cães positivos e negativos de cada residência; e
outra que considerou a quantidade de animais existentes num raio de 100 metros,
que é mais ou menos a medida de um quarteirão. “Definimos um ponto, traçamos um
raio de 100 metros a partir dele e quantificamos os cães positivos e negativos
daquele espaço. E, como se viu, tanto na análise específica da casa quanto na
do quarteirão, a quantidade de cães se mostrou importante.”
Tolezano
ressalta que, no trabalho, conseguiu-se a minúcia de uma análise do risco do
domicílio com um, dois, três ou mais cães. “Além disso, a análise por perímetro
é também uma abordagem bastante interessante: se os quintais se comunicam, por
exemplo, não adianta dizer que o cão infectado está só na casa de um ou de
outro. O cão pode não sair de casa, mas o mosquito infectado pode chegar até
ele mesmo assim e fazer esse elo. Se eu tiro o cão infectado, talvez não tenham
morrido ainda os mosquitos que se contaminaram em cães infectados. Chegamos a
resultados bastante importantes para compreender o quanto e em que velocidade a
doença se dissemina em ambiente urbano.”
Segundo
Matsumoto, os hábitos dos moradores da casa também são importantes. “Estamos
realizando outro estudo sobre isso, como continuidade da pesquisa.”
Para
estimar e prever o risco da leishmaniose visceral com base na população canina,
os cientistas aplicaram modelos geoespaciais. Usaram estimativa de intensidade
de Kernel (que contabiliza, para uma determinada área, a intensidade do
fenômeno espacial); análise de cluster para identificar os domicílios com
características semelhantes (agrupamentos); geoestatística e modelos aditivos
generalizados (GAM) para prever, de acordo com o quantitativo de cães, a
resposta modelada de maneira flexível (por meio de uma função).
“Construímos
um desenho amostral que nos permitisse enxergar o município de Bauru levando em
consideração a relação pessoas-cães, com informações da base de dados do IBGE
[Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]”, resume Tolezano. Isso nos
permitiu analisar áreas que tinham características importantes, mas que nunca
haviam sido investigadas.
Políticas públicas
De acordo
com a Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, em 2019 foram
confirmados 2.529 casos novos de LV no Brasil, com uma taxa de incidência de
1,2 caso a cada 100 mil habitantes. Ainda segundo o documento, a taxa de
letalidade em 2019 foi de 9%: a mais elevada dos últimos dez anos.
As
estratégias para vigilância e controle da doença, traçadas em âmbito federal,
consistem na identificação precoce e no tratamento de todos os casos humanos;
na identificação da presença dos mosquitos e no controle deles (seja com
inseticidas, seja com manejo ambiental); e na identificação e retirada do
reservatório canino (em áreas urbanas).
“Nos
municípios, quando se realiza o inquérito com técnicas sorológicas para a
identificação de cães infectados, o cão que testa positivo deve ser recolhido e
sacrificado. É isso que determina a política pública. E isso vai criando uma
dificuldade de relação com a comunidade, porque a doença continua a ser
transmitida, continuam tirando o cão do domicílio para ser sacrificado e pelo
menos metade ou mais desses animais são completamente assintomáticos. Existe
uma recusa grande entre os munícipes em autorizar que os cães sejam examinados.
E, entre os que realizam o teste e são diagnosticados como positivos, mais da
metade dos donos não autoriza o recolhimento, o que, às vezes, gera alguma
medida judicial. Mas o que acontece é que grande parte dos animais positivos
permanece no ambiente, pelo menos por algum tempo. Eles são
assintomáticos, mas o mosquito pode se infectar a partir deles.”
Para
Matsumoto, do ponto de vista das políticas públicas, talvez fosse necessário
repensar a população canina. “Um exemplo: atualmente, faz-se um inquérito.
Coleta-se o sangue do cão para fazer o exame. Mas é um gasto alto em insumo,
recursos humanos e tempo. Com esse artigo reforçando a importância da população
canina, a gente pode fazer um censo desses animais e já ter uma ideia de em
quais áreas devem ser realizados os inquéritos. Se o quantitativo de cães
importa, talvez as áreas com médias maiores sejam passíveis da aplicação de
outras políticas, diferenciadas, pelos serviços municipais de zoonoses.”
O artigo Impact of the dog population and household environment for the
maintenance of natural foci of Leishmania infantum transmission to human and
animal hosts in endemic areas for visceral leishmaniasis in Sao Paulo state,
Brazil pode ser acessado em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0256534.
Karina Ninni
Agência
FAPESP
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