Que o antigo conceito de poder limitado aos Estados nacionais vem sendo diluído rapidamente é um fato indiscutível. Os Estados continuam soberanos quanto ao poderio militar, ainda que existam exércitos mercenários “terceirizados” ou “quarteirizados”, como aqueles grupos que vez ou outras aparecem em países em conflitos ou em missões frustradas ou não de desestabilização de Estados soberanos, mas nos demais setores, como economia, meio ambiente e comunicação, perderam muito espaço.
A novidade agora é o poder de impor cancelamentos
de serviços da Internet que são disponibilizados aos cidadãos do mundo, mesmo
que chefes de Estado. Isso ocorreu de forma espetaculosa no caso de Donald
Trump, que teve contas canceladas em redes sociais, e, especialmente, no
Twitter.
Trump fazia uso massivo desta rede social,
eclipsando, de certa forma, o trabalho de sua assessoria de comunicação. Era
pelo Twitter que Trump comunicava-se com seus apoiadores e também com o mundo.
E no mesmo sentido, Amazon, Apple e Google baniram
de suas lojas virtuais o aplicativo de comunicação Parler, meio pelo qual os
seguidores de Trump, dentre outros, passaram a utilizar em substituição ao
Twitter.
Realmente assombroso. Vamos por um minuto esquecer
que trata-se de Trump, amado e odiado na mesma proporção.
É fato que as redes sociais e aplicativos
tornaram-se a Ágora do Século XXI. Ágora era o local onde os cidadãos livres de
Atenas, na Grécia antiga, se reuniam para discutir política e exercer seus
direitos de cidadãos.
Naquela época, quando os cidadãos atenienses se
defrontavam com alguma ação, dentre um de seus membros, que poderia ameaçar a
ordem democrática, decidiam o caso em uma votação, e se aplicariam ao cidadão
acusado, os efeitos do ostracismo.
O ostracismo era o banimento de membro da cidade
que consistia em uma votação com a utilização de pequenos pedações de cerâmica
(ostrakon).
As big techs mandaram Trump ao ostracismo
sem ostrakon. No caso de Trump, prontamente seus defensores
alegaram cerceamento da livre expressão, ou seja, censura. Por outro lado, seus
opositores afirmam que se tratam de empresas privadas nas quais o Estado não
pode interferir, muito menos poderiam ser aplicadas garantias constitucionais.
Incluiu-se, ainda, neste debate, a Seção 230 do
CDA, Communications Decency Act que trata da comunicação na Internet e responsabilidade
de serviços como redes sociais e outras plataformas. Ocorre que pouco ajuda tal
argumentação, pois a referida Seção, limita-se apenas a discutir a imunidade ou
limitação de responsabilidade destes veículos em face do que os usuários postam.
Assim, se o Twitter, por exemplo, interfere em
conteúdo de acordo com suas regras, estaria praticamente agindo de forma
editorial, ou seja, solidarizando-se com o que seu usuário posta. De qualquer
forma, é uma prerrogativa do veículo de comunicação, e assunto para longos
debates jurídicos, e nenhuma plataforma vai ceder se não compelida
judicialmente a fazê-lo.
Por outro lado, argumentar que tratar-se-ia de uma
ofensa constitucional ao direito de livre expressão, não seria algo sem
discussão. Há obstáculo na forma pela qual os EUA entendem a eficácia
horizontal e vertical dos direitos fundamentais. Melhor explicando, segundo
essa teoria, eficácia horizontal dos direitos fundamentais é a aplicabilidade
de limites de atuação privada em face do cidadão.
Ou seja, se o Twitter fosse órgão do Estado,
aplicar-se-ia essa limitação na forma vertical, o limite do Estado em relação
ao direito do cidadão. Por outro lado, a teoria da eficácia horizontal advoga
que empresas privadas e particulares devem obedecer aos mesmos princípios
constitucionais os quais o Estado se submete.
Nos EUA não há a aplicação do princípio da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, pois os contratos entre particulares não
se submetem, em teoria, aos princípios constitucionais. Se assim acontecesse,
um diretor de uma associação privada, ou empresa, não poderia ser reconduzido
diversas vezes ao cargo, pois a alternância de poder é norma democrática, bem
como o direito ao voto.
Assim, a priori, os direitos fundamentais não
podem ser aplicados às relações entre particulares.
É bastante importante que os entusiastas dos
valores norte-americano entendam que não podem escolher a parte do sistema
legal estadunidense que mais gostam, por exemplo, idolatrarem as relações de
trabalho, e clamarem por direitos fundamentais aplicados a entes privados, como
no caso de Donald Trump.
Nos EUA, o mais importante é o contrato, e, para
doutrina e jurisprudência, os direitos fundamentais têm apenas a eficácia
vertical.
Cassio
Faeddo - Sócio Diretor da Faeddo Sociedade de Advogados. Mestre em Direitos
Fundamentais pelo UNIFIEO. Professor de Direito. MBA em Relações
Internacionais/FGV-SP Site: www.cassiofaeddo.com.br
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