Neste preâmbulo, valho-me de duas valiosas e até
antagônicas metáforas da sabedoria popular. Quando citei a primeira – “é o
pássaro madrugador que apanha a minhoca” –, meu amigo, admirável matemático e
executivo de várias empresas renomadas, com um sorriso maroto, retrucou: “é,
mas é o segundo rato que come o queijo”. Sim, demorei um pouco para entender: o
primeiro rato madrugador é abocanhado pelo gato!
Pois bem, analogamente a essa parábola, na educação
superior brasileira, quem está comendo o queijo é a educação a distância (EaD),
que é consideravelmente recente, mas já se consolidou. O expressivo crescimento
dessa modalidade educacional, porém, não se fez sem efeitos colaterais, pois,
com alguma dose de canibalismo, promoveu uma redução no ensino presencial. Com
matrículas praticamente nulas em 2003, a EaD alcançou a cifra de quase 1,8
milhão de alunos em 2017 (dados mais recentes disponibilizados pelo Inep/MEC),
com taxas de crescimento de até 27% ao ano. Nesse mesmo período, a modalidade
presencial apresentou um incremento anual médio de 6%; no entanto, apresenta um
ponto de inflexão há três anos, com quedas consecutivas, especialmente nas
instituições de ensino superior (IES) privadas.
Dos 3,2 milhões de calouros em 2017, cerca de 1,1
milhão optou pela EaD e 2,1 milhões pelo presencial. Do total de 8,3 milhões de
universitários em instituições públicas e privadas, o porcentual de
matriculados na EaD é de 21,2% (há dez anos era 7%), índice que avança para
46,8% nos cursos de licenciatura. Em 2023, projeções da Abmes indicam que será
equivalente o número de ingressantes nas duas modalidades, com leve decréscimo
no presencial.
Ademais, há ainda outros 5 milhões a 7 milhões de
jovens e adultos em ofertas EaD não controladas pelo MEC, considerando cursos
livres, de capacitação ou de extensão. Aprovados ou não pelo MEC, o fato é que
no ambiente virtual desenvolvem-se características muito valorizadas no mercado
de trabalho: autonomia para aprender, disciplina pessoal, fluência digital,
foco, boa gestão do tempo, maturidade para não embicar para o sedutor mundo
digital das mídias sociais e outras distrações. E, após concluído o curso, o
diploma (ou o certificado) não faz qualquer referência ao modelo escolhido,
presencial ou a distância.
Essa sinalização se faz ainda mais eloquente quando
se considera o crescimento célere de matrículas no ensino híbrido ou
semipresencial, no qual se amalgamam a educação presencial e a distância, sob a
égide de uma maior efetividade na aprendizagem. E cabe aqui uma explicação
adicional e relevante: os cursos semipresenciais, mesmo que ofertem 30% ou 50%
de aulas com professor em sala, entram nas estatísticas da EaD. São os que mais
crescem, e merecidamente, diante da conjuntura atual.
Até 2016, para abrir um polo de EaD, o tempo era de
cerca de três anos, e os seis maiores players educacionais detinham 80% das
matrículas. A partir de um novo marco regulatório do MEC, de 21 de junho de
2017, disparou-se o gatilho para uma abertura descomunal de polos, partindo-se
de 6.583, antes da referida portaria, para 15.394 em julho de 2018 (parte deles
inativos, por falta de matrículas). Essa explosão de polos levou à prática de
preços predatórios, e o alerta é que isso não comprometa a imagem da EaD, como
aconteceu com o antigo supletivo – seja EaD, seja presencial, é determinante a
qualidade do ensino. Segundo estudo da Consultoria Hoper Educacional, o preço
médio da mensalidade em 2012 era de R$ 358, caindo
para R$ 270 em 2018
– ou seja,
um terço da média nacional do presencial, equivalente a R$ 796.
E três são os atrativos preponderantes da educação
em plataformas digitais: os preços acessíveis, uma vez que as mensalidades da
graduação totalmente on-line ficam bem aquém da presencial; os discentes são
atraídos pelos horários flexíveis – um instrumento democrático, pois permite
estudar onde e quando puder, bastando ter acesso à internet; e a eliminação dos
deslocamentos, que com o trânsito caótico nos grandes centros pode significar
um ganho diário de duas a três horas e redução de gastos com a locomoção.
A dicotomia ainda hoje existente entre a educação
virtual e a presencial em breve não fará mais sentido. Serão modalidades
complementares. “É aprendizagem e ponto”, num modelo que se aproxima do que
atualmente chamamos de semipresencial. Nesse sentido, a partir de uma Portaria
do MEC de 31 de dezembro de 2018, vigente portanto agora em 2019, em uma IES
até 40% do conteúdo da carga horária de um curso presencial pode ser a
distância – antes, esse limite era de 20%. Há regramentos para essa
implantação, e parte das críticas que surgiram deve merecer do MEC ajustes no
decurso dos próximos meses, mas devemos ter em mente que os ingressantes em nossas
universidades são nativos digitais e em geral dominam bem essas novas
tecnologias.
Quanto aos docentes – e este é o lado triste –,
muitos bons didatas do passado, com suas aulas convencionais e bem dadas, estão
perdendo o emprego por não conseguirem o mesmo êxito em plataformas e
linguagens digitais. E, nesse aspecto, valho-me de outra metáfora: os
professores estão sendo convidados a embarcar em ônibus de ida, sem retorno. A
maioria embarca e, no caminho se capacita, se adapta, é darwinista e segue em frente;
mas outros desembarcam ou são desembarcados.
Toda disrupção é alvo de críticas, mas nesse caso
elas não deveriam estar voltadas à modalidade EaD, e sim às IES que não ofertem
oportunidades de boa capacitação aos seus professores e tutores, aos materiais
de apoio sem boa didática ou, ainda, às tecnologias educacionais deficientes.
Ademais, é um instrumento indispensável para que atinjamos a Meta 12 do Plano
Nacional de Educação (PNE) – matricular 33% dos jovens de 18 a 24 anos na
educação superior até 2024, pois atualmente estamos perto dos 19%.
Jacir J. Venturi - coordenador na Universidade
Positivo e membro do Conselho Estadual de Educação, foi professor da UFPR e
PUCPR.
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