Uma vez finalizado o julgamento do
habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Lula, o Supremo Tribunal
Federal (STF) ratificou o
entendimento de que é possível a prisão do acusado após o esgotamento
das vias ordinárias recursais. Ou seja, o acusado condenado em segunda
instância pode ser preso para iniciar o cumprimento da pena antes do
chamado trânsito em julgado da condenação.
Por mais que o referido entendimento, ao menos sob um primeiro enfoque,
seja manifestamente dissonante do Texto Constitucional, a real verdade é
que o Supremo deixou clara a sua posição. Porém, sem dúvida, a votação
apertada também deixa transparecer que a Corte está dividida com relação
ao assunto, sendo certo que uma futura alteração de entendimento não está
descartada.
De tudo o que foi exposto no julgamento de ontem, vale dizer, dos
votos externados pelos doutos ministros do Supremo, duas ponderações
precisam ser feitas.
A primeira diz respeito ao voto proferido pela ministra Rosa
Weber, sobretudo no que diz respeito à adoção irrestrita do chamado
"princípio da
colegialidade".
Ora, no voto por ela apresentado, ficou claro que o entendimento pessoal
da Ministra é totalmente diverso daquele por ela manifestado por ocasião
do julgamento do HC. Importante ressaltar que, embora claramente contrária
à prisão em segunda instância, seu voto, ao final, mostrou-se favorável
à mitigação da presunção de inocência, em homenagem ao tal princípio
da colegialidade.
Ficou evidente, portanto, que ela, apesar de ter um pensamento diverso, votou
daquela maneira apenas em função da opinião formada pelos demais
ministros do Supremo. Isto é, segundo o voto da ministra Rosa Weber,
a opinião pessoal do julgador acabou cedendo diante do entendimento do
órgão colegiado a que ele pertence.
Com o devido respeito, essa posição chega a causar certa perplexidade,
na medida em que revela uma aparente renúncia a um predicado que é
muito importante à magistratura, qual seja, o da independência das suas
decisões.
É bem verdade, que o tal "princípio da colegialidade" tem por
escopo garantir e resguardar o entendimento jurisprudencial já firmado por
um
determinado Tribunal. Ou seja, é um princípio muito útil para preservar
a jurisprudência de uma Corte de justiça, máxime quando se tratar de temas
já sumulados ou pacificados.
Todavia, o assunto ontem debatido não representava, e nem representa,
o entendimento já firmado pelo STF. Muito pelo contrário!
Afinal, o resultado apertado da votação (seis a cinco) só evidencia que
a nossa Suprema Corte ainda está dividida com relação ao assunto. Dentro
desse contexto, utilizar-se do tal princípio da colegialidade, em
detrimento da própria pessoal, representa, sob um enfoque inicial,
verdadeira traição à independência e à imparcialidade do magistrado.
Ora, se o juiz passa a decidir, sempre e sem qualquer tipo de
reserva, segundo as opiniões dos outros magistrados que o circundam, ou,
melhor dizendo, consoante o tal princípio da colegialidade, então será
melhor substituirmos os magistrados por robôs pré-programados. Sendo
assim, como conclusão, entendo que o voto da ministra Rosa Weber foi um
verdadeiro acinte a independência jurisdicional.
Ainda comentando o voto da ministra Rosa Weber, chama a atenção o fato
de que ela, caso houvesse mantido o seu posicionamento pessoal teria dado
ao julgamento um outro resultado, já que ela faria parte da maioria
vencedora, que acabaria concedendo o HC ao ex-presidente Lula. Isso
porque, como visto ontem, o ministro Gilmar Mendes alterou o voto que
proferira em fevereiro de 2016, de tal forma que, se a ministra Rosa Weber
mantivesse o seu posicionamento pessoal, ela faria parte da maioria. Logo,
houvesse ela mantido o voto que dera em 2016, o princípio da colegialidade
seria seguido da mesma maneira.
Outro voto que chamou atenção foi o proferido pelo ministro
Barroso. Primeiro porque, o Ministro pareceu dar mais importância aquilo
que a
sociedade pensa/deseja do que à redação expressa do Texto Constitucional.
Ou seja, aparentemente, foi um voto proferido consoante os anseios da
sociedade leiga, o que é um rematado equívoco para todo e qualquer
magistrado, pois o juiz, imparcial como deve ser, está adstrito ao que diz
a lei e, por isso, não pode julgar segundo os desejos e as idiossincrasias
de uma sociedade leiga.
Ainda com relação ao voto proferido pelo ministro Barroso, é certo que,
em determinado momento, foi feita menção a diversas estatísticas
relacionadas aos processos de cunho penal julgados pelas Cortes Superiores
(STJ e STF). Consoante os números apresentados, poucos teriam sido os
casos nos quais o julgamento pelas Cortes Extraordinárias teriam provocado
alterações significativas nas decisões proferidas em segundo grau.
Nesse ponto, é importante mencionar que, de fato, após a decisão de
segundo grau, os recursos posteriores não têm, em regra, o condão de
provocar
profundas alterações no julgamento.
No entanto, em
razão das matérias discutidas nos recursos endereçados às nossas Cortes
superiores, é possível que sobrevenha a anulação do processo, ou a
alteração do regime prisional/montante das penas ou, quiçá, até mesmo
a prescrição do delito.
Sendo assim, dentro desse quadro de ideias, é fácil perceber que, segundo
as diversas possibilidades que o Direito apresenta, é razoável admitir que
alguém, preso em segunda instância, tenha a sua situação alterada por
conta do julgamento de recursos interpostos juntos ao STJ/STF, com a
consequente soltura. Logo, se assim o é, fica fácil perceber que um único
cidadão que venha a ser prejudicado por conta desse novo entendimento já
justificaria, por si só, que fosse respeitado o trânsito em julgado.
Eis o equívoco, portanto, de se julgar com base naquilo que os outros
pensam ou, então, de se decidir com base em estatísticas.
A lei, e somente a lei, é que deve
servir de norte ao magistrado.
Que venha, portanto, o julgamento das ADCs, para que assim o STF retome
o devido lugar de guardião da Constituição Federal.
Euro Bento Maciel Filho - advogado e professor de Direito Penal e
Processo Penal, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e sócio do escritório
Euro Filho e Tyles Advogados Associados