Nestes últimos dias você provavelmente ouviu falar
sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a legislação brasileira que
regula o tratamento de dados pessoais no Brasil. A polêmica em torno da sua
vigência acabou por acarretar na sua popularização.
O tratamento de dados pessoais é a engrenagem que
move incontáveis negócios na internet, em especial as redes sociais. Cada vez
mais estamos migrando para uma economia digital, por isso os dados pessoais são
conhecidos como o “novo petróleo”. Fato é que toda empresa, em maior ou menor
grau, trata dados pessoais através de informações que lhe são fornecidas pelos
seus colaboradores, consumidores e parceiros comerciais.
De maneira sintética e bem simplista, dados
pessoais são as informações que, direta ou indiretamente, podem identificar uma
pessoa. É preciso evidenciar que a LGPD não veio obstar o tratamento dos dados
pessoais, mas sim regulamentá-lo, para que seja feito com respeito ao titular
dos dados.
O tratamento de dados pessoais tem muitos
benefícios: personalizam experiências, ajudam no desenvolvimento de novos
modelos de negócios, facilitam, estudos etc. Todavia, não pode ser feito à
revelia do seu titular. Assim, a LGPD veio trazer equilíbrio para este ponto.
O Brasil não tinha uma cultura de proteção de dados
pessoais, algo que está mudando desde a promulgação da LGPD. Por esta razão
poucas pessoas questionavam o modelo de negócios por trás dos aplicativos,
poucos
questionavam quem tem acesso às nossas conversas no
ambiental virtual, qual o destino de uma “inocente” selfie que postamos no
facebook/instagram ou liam os termos de uso.
Você já se questionou como o aplicativo que mostra
a sua versão no sexo oposto, te envelhece ou rejuvenesce, gratuitos para
download auferem lucro? Pois é, há um ditado que diz se você não está pagando
por um determinado produto, o produto pode ser você”.
O modelo de negócio desses famigerados aplicativos
é justamente o tratamento de dados pessoais: em troca do acesso ao aplicativo
você fornece os seus dados para que eles possam ser tratados pela empresa
gestora do aplicativo, que irá analisar as suas curtidas, postagens, fotos,
informações, check in e montar uma verdadeira “biografia digital” sua para
vendê-la à empresas que irão lhe direcionar notícias e propagandas que elas
próprias entendem como de seu interesse.
Para se ter uma ideia de como esta “biografia
digital” dos usuários de aplicativos é rica de informações, a jornalista
francesa Judith Deportain, publicou o livro “Glamour sous algorithme” no qual
narra uma inusitada experiência enquanto usuária do aplicativo Tinder: Judith
teve conhecimento de que o aplicativo mantinha uma “pontuação de
desejo/atratividade”.
Curiosa para saber qual era o seu grau de
atratividade segundo o Tinder, Judith entrou em contato com o aplicativo e
depois de muito insistir conseguiu ter acesso ao documento que fundamentava a
sua pontuação: recebeu um relatório com 800 (oitocentas!) páginas, contendo
informações bem íntimas da sua vida, postagens em outras mídias sociais, fotos
e etc. Um verdadeiro dossiê da sua personalidade.
Te desafio a escrever uma autobiografia com 800
folhas. Parece difícil, mas os algoritmos conseguiram fazê-la rapidamente e com
uma alta precisão, tudo com base nos dados pessoais espalhados por vários
bancos de dados. E é essa “biografia digital” que até então transitava
livremente entre várias empresas.
Assim, se por um lado o tratamento de dados pode
proporcionar uma experiência mais personalizada, também pode violar a
privacidade/intimidade e gerar manipulação por cercear, ou ao menos diminuir, a
sua capacidade de escolha daquilo que realmente te interessa, pois no final do
dia você terá recebido apenas notícias e serviços que uma máquina escolheu como
adequados para você.
Um exemplo que representa muito bem os sérios
impactos da manipulação dos dados pessoais é o que ocorreu na última eleição
para presidente dos Estados Unidos. Um app instalado no Facebook e usado pela
Cambridge Analytica que fazia testes de personalidade “gratuitos” como
contrapartida tinha acesso não só aos resultados do seus testes, mas também as
suas curtidas, as curtidas dos seus amigos e dos amigos dos amigos daqueles que
faziam o teste.
E para qual motivo eles queriam essas informações ?
Para traçar o perfil psicológico de 87 milhões de pessoas indecisas sobre
Donald Trump. Essas pessoas foram divididas em cinco perfis: mente aberta,
conscientes, extrovertidos, amáveis e neuróticos e passaram a receber
propaganda eleitoral altamente personalizada de acordo com o seu perfil. Assim,
cada pessoa recebeu um discurso elaborado com base nas suas tendências, hábitos
e perspectivas.
O mesmo recurso foi utilizado em eleições de outros
países como o México, Ucrânia, Malásia e Quênia e até mesmo no plebiscito que
culminou na saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit).
Pois bem. Os aplicativos que te envelhece,
rejuvenesce ou mostram a sua versão no sexo oposto atuam da mesma forma:
coletam uma série de informações sobre a sua personalidade, analisam através de
várias combinações e vendem para empresas realizarem estudos, venderem os seus
produtos e até mesmo para treinarem software de reconhecimento facial.
Alias, falando em reconhecimento facial, no meio do
desafio dos dez anos lançado o ano passado nas redes sociais e aderido por
muitos usuários que colocavam uma foto de 2009 e outra 2019, surgiu a polêmica
de que o objetivo por de trás dele era treinar sistemas de reconhecimento
facial para captarem o envelhecimento.
Não tenho a informação se realmente foi essa a
intenção de quem lançou o desafio, mas a verdade é que as redes sociais não
precisam que você participe desse desafio para treinar os seus sistemas: as
empresas já possuem o acesso às suas fotos publicadas e podem usar para
alimentar o seu algoritmo. Basta coletarem uma foto que você publicou logo
quando ativou o seu perfil e uma atual.
A ideia deste artigo não é causar pânico ou incitar
o abandono das redes sociais, mas sim conscientizar os usuários do modelo de
negócios por trás das redes sociais, a importância de conhecer os seus termos
de uso, ajustar a política de privacidade e fazer um uso mais consciente dessas
redes.
A Lei Geral de Proteção de dados veio justamente
para proporcionar uma maior proteção aos titulares dos dados pessoais, na
medida que , a partir de agora, o tratamento não pode ser feito de forma
indiscriminada e sem qualquer responsabilidade das empresas.
O titular passa a ter o direito de saber para onde
os dados deles serão enviados, quem vai acessá-los e qual a finalidade da
empresa em obter aquela informação, como será feito o tratamento e a
possibilidade de retificar os dados quando equivocados.
Semelhante ao código de defesa do consumidor, que
veio para proteger a parte mais vulnerável no mercado de consumo, a LGPD tem o
propósito de salvaguardar o titular de dados pessoais dentro de uma sociedade
cada vez mais movida pelo tratamento de dados. Portanto, seja muito bem vinda
LGPD.
Juliana Callado Gonçales - sócia do Silveira
Advogados e especialista em Direito tributário (www.silveiralaw.com.br)