Ao que
tudo indicava, a celeuma “voto de qualidade” no Carf, fator de grande
instabilidade institucional no órgão nos últimos anos, havia sido superada com
a solução, legislativamente negociada, no âmbito da Lei
nº 14.689/2023, ao prever-se – como contrapartida ao
reestabelecimento do voto de qualidade do presidente do colegiado –, o regime
de exoneração das multas de ofício e possibilidade de pagamento parcelado do
saldo devedor, em 12 prestações, mediante exclusão dos juros de mora (Selic) e
utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa [1].
Eis que
surge uma engenhosa interpretação do Ricarf, traduzida em recente artigo
publicado pelo dileto amigo Carlos Daniel em “Direto do Carf” [2], coluna
do ConJur, e que está gerando consequências gravíssimas aos contribuintes
que, vencidos por voto de qualidade nas Câmaras baixas, passaram a desistir de
seus Recursos Especiais à Câmara Superior logo após a publicação da Lei
nº 14.689/2023, de forma a encerrarem suas discussões administrativas
e aderirem ao regime de pagamento então instituído.
É nesse
salutar espírito dialógico que, na intersecção dos temas processuais e
materiais (evidenciando o instrumentalismo tão caro à processualística [3]),
procuraremos estabelecer breves contrapontos para delimitar os institutos da
“desistência recursal” e da “renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação”,
evitando distorções e contribuindo para um ambiente de segurança e não
surpresa, sob pena de incentivar-se novos e redundantes metacontenciosos.
1) O
contexto institucional envolvido no retorno do “voto de qualidade”
Na origem
da instabilidade institucional gerada pelas recentes mudanças do voto de
qualidade no Carf, tem-se a Lei nº 13.988/2020, fruto de conversão da
MP 899/2019 (“MP do contribuinte legal”), na qual foi inserido o art.
19-E na Lei nº 10.522/2002, prevendo que, nos casos de empate de
julgamento nos processos de determinação e exigência do crédito tributário no
âmbito do Carf (ou seja, caracterizada dúvida interpretativa sobre a imposição
fiscal), a matéria resolver-se-ia em favor do contribuinte.
Essa
novidade legislativa foi duramente criticada pelas entidades fazendárias,
desaguando na fatídica fala do ministro da Fazenda, que chegou a comparar os
julgadores com origem nas entidades representativas dos contribuintes a
detentos[4].
A inserção
do famigerado “art. 19-E” foi tida como uma “emenda jabuti”, tendo sido objeto
da Portaria ME nº 260/2020, na qual se procurou restringir de todo
modo o alcance do critério de desempate pró-contribuinte [5], além de
ter sido atacada por meio das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415, uma delas de
iniciativa da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do
Brasil (Anfip), ocasionando movimentos grevistas e diversas suspensões de
pautas no âmbito do Carf naquele período.
Iniciado o
julgamento das ações diretas junto ao STF, apesar da maioria formada pelo
reconhecimento da validade do “art. 19-E”, o julgamento foi suspenso em virtude
de pedido de vista, na sessão plenária de 24/3/2022. Enquanto isso, após uma
tentativa fracassada de acordo entre governo e OAB no âmbito das ADIs [6], o Poder
Executivo editou a MP 1160, de 12/01/2023, revogando, sem debate, o “art.
19-E”, fato esse que ocasionou grande desconforto e resistência no Congresso
Nacional, de modo que, numa solução negociada [7], restou
ajustado que a matéria seria deliberada no âmbito de um projeto de lei, e assim
foi feito no PL 2.384/2023, convertido na Lei nº 14.689, de
20/9/2023, havendo, então, a perda de vigência da MP 1160 em 1º/06/2023 [8].
Nesse
contexto, criou-se, em ambiente material, o regime de pagamento dos créditos
tributários mantidos no Carf por voto de qualidade, veiculado pela Lei
nº 14.689/2023, regulamentado pela IN RFB nº 2.167/2023 e
incluído na carta de serviços do Regularize [9] da
PGFN (para débitos inscritos em dívida ativa decorrentes de decisão por voto de
qualidade).
2) Efeitos
da desistência do Recurso Especial no Carf: consolidação da decisão de mérito
por voto de qualidade
Diante do
regime de pagamento veiculado pela Lei nº 14.689/23, induziu-se o
comportamento dos contribuintes em direção à regularização dos créditos
tributários mantidos por voto de qualidade. Com isso, diversos contribuintes
que detinham decisões desfavoráveis passaram a desistir dos seus Recursos
Especiais à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), reconhecendo suas
derrotas por qualidade nas Câmaras baixas, permitindo assim a regularização dos
débitos mediante exclusão de multa e juros.
Surge
então a interpretação regimental encampada em decisões homologatórias dos
pedidos de desistência recursal, segundo a qual restaria caracterizada a
“renúncia ao direito”, tornando-se “insubsistentes” as decisões anteriores do
processo. Ou seja, como num “pulo do gato”, aquela derrota por voto de
qualidade torna-se inexistente, impedindo-se assim a regularização do débito
com exclusão de multa e juros.
Tomando
como contraponto o citado artigo de Carlos Daniel, tem-se à seguinte
conclusão: “o art. 133, § 3º do Ricarf equipara a desistência ao ato de
renúncia ao direito material litigioso, ou seja, cria-se uma desistência
normativamente qualificada, distinta daquela do CPC.”
Com as devidas vênias, pensamos não ser possível construir essa equiparação entre desistência recursal e renúncia ao direito material, a partir do texto do Ricarf, e para isso justificamos os pontos críticos, com o objetivo de evitar confusão dos institutos processuais e, quem sabe, reverter a consolidação de uma prática administrativa que vem induzindo insegurança.
a)
Diferença entre i) desistência da ação e desistência
recursal; ii) renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação
e renúncia recursal. Ausência de efeito substitutivo na desistência ou renúncia
recursal
Não há
dúvidas sobre as diferenças entre desistência da ação e renúncia ao direito
sobre o qual se funda a ação: a primeira produz julgamento sem resolução de
mérito, dependendo da anuência do réu caso já oferecida contestação (CPC,
artigo 485, VIII e § 4º), salvo no caso do artigo 1.040, § 3º, do CPC, não
fazendo coisa julgada material e, portanto, permitindo a repropositura da ação;
a segunda produz julgamento de mérito, não dependendo da anuência do réu (CPC,
artigo 487, III, “c”), impedindo a repropositura da ação (pressuposto
processual negativo). Tratam-se, portanto, de institutos que se diferenciam a
partir dos efeitos (materiais e processuais) que produzem na coisa
julgada (formal ou material).
Desistência
e renúncia da ação, contudo, não se confundem com desistência e
renúncia do recurso, tais quais previstas nos artigos 998 e 999 do
CPC [10], e aqui
se encontra o primeiro problema de premissa na conclusão do artigo de Carlos
Daniel, ora criticada. Por um lado, só se cabe falar em desistência da ação até
a prolação de sentença, nos termos do artigo 485, § 5º, do CPC, sendo que, após
a contestação, o autor da ação somente pode desistir da sua pretensão mediante
anuência do réu. Outra coisa absolutamente distinta se passa com a desistência
do recurso, prevista no artigo 998 do CPC, a qual pode se dar pelo recorrente
(tanto faz se autor ou réu da ação), independentemente da anuência do recorrido.
Ou seja,
trata-se de ato de disposição unilateral do recorrente que,
exatamente por não afetar o direito de ação, independe de anuência do
recorrido, até porque o recorrente pode ser o próprio réu. Nessa situação, a
desistência do recurso produz efeitos imediatos (direito potestativo), não
dependendo sequer de homologação pelo tribunal, não implicando extinção do
processo sem resolução de mérito e, por isso mesmo, não havendo que se falar em
efeito substitutivo, tal qual previsto no artigo 1.008 do CPC [11].
Desiste-se do recurso, mantem-se intacta a sentença nos termos em que
prolatada.
É lição
comum que o efeito substitutivo dos recursos opera nos limites do efeito
devolutivo, aos capítulos efetivamente enfrentados na causa, pressupondo,
portanto, recebimento e apreciação do mérito recursal. De modo que,
não há efeito substitutivo no caso de não conhecimento do recurso, como se dá
na hipótese de desistência recursal.
O artigo
999 do CPC, por sua vez, ao se referir a “renúncia ao direito de
recorrer”, não se equipara à renúncia do direito material sobre o qual se
funda a ação, prevista no artigo 487, III, c, do CPC, tratando, em verdade, de
manifestação unilateral da parte sucumbente (autor ou réu da ação), antes
de interposto o seu recurso.
Em outras
palavras, caso já interposto o recurso, é possível sua desistência pelo
recorrente; caso ainda não interposto o recurso, é possível sua renúncia pelo
sucumbente, tratando-se, em ambos os casos, de direito potestativo da parte
recorrente/sucumbente, ou seja, fato extintivo do direito de recorrer,
portanto, não dependente de anuência da outra parte.
Por maior
razão, não há que se falar em efeito substitutivo na renúncia ao direito de
recorrer, já que, neste caso, sequer há recurso interposto. Na renúncia ao
direito de recorrer, demonstra-se desinteresse na revisibilidade do conteúdo da
sentença, ou seja, o vencido aceita a decisão judicial e não pretende modificar
sua condição no processo, a de vencido.
Em caso
emblemático envolvendo o tema, assim decidiu o STJ: “A desistência do
recurso ou a renúncia ao prazo recursal determina, em regra, o trânsito
em julgado da decisão impugnada, se não houver, vale registrar, recurso
pendente de julgamento da outra parte” (REsp 1.344.716 –
grifos nossos) [12].
Em resumo,
desistência do recurso e renúncia ao direito de recorrer não se confundem com
desistência da ação e renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, estes
sim institutos que afetam a esfera patrimonial de direitos disponíveis da
parte ex adversa e, por isso mesmo, possuem efeitos
específicos no CPC, sobretudo no que diz respeito à coisa julgada.
Uma vez ocorrida a desistência ou renúncia recursal, não há extinção do processo sem resolução de mérito, operando-se o trânsito em julgado da decisão impugnada tal como proferida, a qual não é substituída. Isso pela razão óbvia de que não cabe desistência da ação, após a prolação de sentença.
b)
Impossibilidade de renúncia implícita ou presumida
Há que se
observar que a renúncia a direito material há de ser interpretada estritamente
(artigo 114 do Código Civil [13]). E, para
tanto, há necessidade de procuração específica para que o advogado possa
desistir da ação ou renunciar ao direito sobre o qual ela se funda (CPC, artigo
105), diferentemente do que ocorre na desistência ou renúncia recursal,
exatamente porque não se admite presunção.
Nesse
sentido, diante de cláusulas padrão inseridas nos antigos e tradicionais
parcelamentos tributários por adesão (Refis), prevendo a renúncia ao direito
material, é consolidado o entendimento segundo o qual: “embora para a adesão
ao Refis a lei imponha a renúncia sobre o direito em que se funda a ação, descabe
ao Judiciário, nessas circunstâncias, decretá-la de ofício, sem que ela tenha
sido requerida pelo autor, visto que as condições de adesão ao parcelamento
não estão sub judice.” (REsp 963.420, ministra Eliana Calmon, 2ª
Turma, julgado em 4/8/2009, DJ 17/8/2009 – grifo do autor). No mesmo sentido:
STJ-1ª Seção, REsp 1.124.420, ministro Napoleão Maia filho, j.
29/2/2012, DJ 14/3/2012.
E ainda: “(…)
3. À luz da jurisprudência do STJ, a renúncia ao direito sobre o qual
se funda a ação tem que ser expressa, não se admitindo que seja presumida em
razão das disposições legais que regem o benefício fiscal da Lei n. 11.941/2009 (v.
G.: REsp
1048669/RJ, rel. Ministro Teori Albino
Zavascki, 1ª Turma, julgado em 5/2/2009, DJe 30/3/2009; REsp
757.719/PR, rel. ministro José Delgado, 1ª
Turma, julgado em 23/8/2005, DJ 19/9/2005 p. 227).”
Não
havendo que se confundir desistência e renúncia recursal com renúncia ao
direito material, bem como não havendo como se presumir a renúncia ao direito
material, resta-nos analisar as disposições do Ricarf sobre o assunto.
c) A
previsão constante no § 3º do artigo 133 do Ricarf e a inexistência de coisa
julgada no processo administrativo tributário
Compreendidas
e delimitadas as diferenças dos institutos da desistência e renúncia da ação, e
desistência e renúncia recursal, vejamos o que dispõe o Ricarf sobre o assunto:
“Art.
133. O recorrente poderá, em qualquer fase processual, desistir do
recurso em tramitação.
§ 1º. A
desistência será manifestada em petição ou a termo nos autos do processo.
§ 2º. O
pedido de parcelamento, a confissão irretratável de dívida, a extinção sem
ressalva do débito, por qualquer de suas modalidades, ou a propositura pelo
contribuinte, contra a Fazenda Nacional, de ação judicial com o mesmo objeto,
importa a desistência do recurso.
§
3º. No caso de desistência, pedido de parcelamento, confissão
irretratável de dívida e de extinção sem ressalva de débito, estará
configurada renúncia ao direito sobre o qual se funda o recurso interposto pelo
sujeito passivo, inclusive na hipótese de já ter ocorrido decisão favorável
ao recorrente.
§ 4º. Quando
houver decisão desfavorável ao sujeito passivo, total ou parcial, sem recurso
da Fazenda Nacional pendente de julgamento:
I – se
a desistência for parcial, os autos serão encaminhados à unidade de origem para
que, depois de apartados, retornem ao Carf para seguimento quanto à parcela da
decisão que não foi objeto de desistência; e
II – se
a desistência for total, os autos serão encaminhados à unidade de origem para
as providências de sua alçada, sem retorno ao Carf.
§5º. Quando
houver decisão favorável ao sujeito passivo, total ou parcial, com recurso da
Fazenda Nacional pendente de julgamento, e a desistência for total, o
Presidente de Câmara declarará a definitividade do crédito tributário,
tornando-se insubsistentes todas as decisões que lhe forem favoráveis.
§6º. Após
iniciado o julgamento, a definitividade do crédito tributário, e a
insubsistência de eventuais decisões favoráveis ao sujeito passivo, serão
declaradas pelo Colegiado.”
Como se
vê, o § 3º do artigo 133 dispõe que “no caso de desistência (…) estará
configurada renúncia o direito sobre o qual se funda o recurso”,
de modo que, desde logo, esbarramos num problema de ordem técnico-sintática e
semântica que nos impede qualquer interpretação extensiva (aliás, vedada pelo
art. 114 do Código Civil), no sentido da equiparação regimental da desistência
recursal à renúncia ao direito material sobre o qual se funda a AÇÃO,
criativamente nomeada como “desistência normativamente qualificada”.
Ao dispor
sobre renúncia ao direito sobre o qual se funda o recurso, o Ricarf
permanece absolutamente dentro das regras processuais que regulam os institutos
da desistência e renúncia recursal, de modo que renunciar ao direito sobre o
qual se funda o recurso não se confunde com renunciar ao direito sobre o qual
se funda a discussão objeto do auto de infração, até porque só se pode
desistir/renunciar sobre aquilo que se tem disposição (no caso, a matéria
recorrida).
Além do
mais, como se viu, a renúncia ao direito deve ser expressa e exige poderes
específicos, não podendo ser presumida. E nem poderia o Ricarf dispor de modo
contrário, na medida em que, não obstante exerça função jurisdicional atípica,
suas decisões não produzem coisa julgada, exatamente em função da
inafastabilidade da tutela jurisdicional (CF/88, artigo 5º, XXXV). A figura
aproximada à renúncia a direito, prevista no CPC, no máximo poderia se dar com
a renúncia à instância administrativa, como ocorre, por exemplo, no caso de
concomitância com ação judicial que discuta o mesmo objeto, mas ainda assim
precisa ser solicitada expressamente [14] e
não produz coisa julgada.
Aqui
reside, portanto, o esvaziamento da sugestiva tese da equiparação da
desistência recursal à renúncia ao direito material, tendo em vista que que não
há qualquer efeito material prático na indigitada equiparação (senão um
perverso e duvidoso efeito arrecadatório), pois a matéria continuará podendo
ser discutida no Judiciário.
O
desconforto que se procurou contornar no Ricarf está ligado à chamada preclusão
lógica, ou aquiescência da decisão recorrida, prevista no artigo 1.000 do
CPC [15], a qual
igualmente não se confunde com renúncia a direito material e nem gera efeitos
de coisa julgada.
Esse parece
ser o endereçamento conferido pelo microssistema de desistência e renúncia
recursal veiculado pelo artigo 133 do Ricarf, sobretudo quando o § 3º dispõe,
em sua parte final, que diante daquelas figuras (desistência, parcelamento,
confissão da dívida e extinção do débito), estará configurada a renúncia ao
direito sobre o qual se funda o recurso, “inclusive na hipótese de já
ter ocorrido decisão favorável ao recorrente.”
O que se
quer evitar é a incompatibilidade lógica entre a aquiescência do crédito tributário
e o ato de recorrer. E, no caso da desistência recursal visando o pagamento do
débito nos termos da Lei nº 14.689/2023, estamos diante da clara
figura de aquiescência à decisão recorrida, que em nada se confunde com
renúncia a direito, muito menos gera efeito substitutivo.
Há,
simplesmente, perda do interesse de agir recursal, de modo que a decisão de
mérito, então recorrida, passa a ser definitiva.
Os §§ 4º e
5º do artigo 133 deixam isso evidente ao separarem as consequências da
preclusão lógica no caso de haver decisão desfavorável ou favorável ao sujeito
passivo, sem ou com recurso da Fazenda Nacional.
E, por
óbvio, havendo recurso da Fazenda Nacional pendente de julgamento, a desistência
do sujeito passivo em relação ao seu recurso não prejudica o recurso
fazendário. O que se quer evitar, reitere-se, é a incompatibilidade lógica que,
por exemplo, poderia se dar numa situação em que o sujeito passivo possua
decisão favorável, total ou parcialmente, com recurso fazendário pendente e, em
seguida, realize o parcelamento do seu débito para, num segundo momento,
rescindi-lo e pleitear a extinção da exigência com base na decisão anterior que
lhe era favorável, pedindo ainda a restituição dos valores pagos.
Para
evitar esse tipo de situação é que o § 5º do artigo 133 previu a insubsistência
das decisões anteriores favoráveis ao sujeito passivo, cenário esse que não
se confunde e nem se aproxima, em absoluto, do problema aqui discutido, em que
o sujeito passivo possui decisão desfavorável e desiste do seu recurso para
promover o pagamento do débito nos termos do regime instituído pela Lei
nº 14.689/23.
3)
Conclusões
Não é
possível concluir, portanto, que 1) o “efeito dessa
desistência qualificada, enquanto ato de disposição do direito discutido, é
idêntico ao que se dá no CPC, sendo isso esclarecido no artigo 133, §§ 5º e 6º
do Ricarf, ao afirmarem que a desistência gera a definitividade do crédito
tributário”.
Sem
dúvida, a desistência recursal, não havendo recurso da outra parte, gera a
definitividade da decisão recorrida no CPC, assim como ocorre no Ricarf, daí
porque a definitividade do crédito tributário. Mas isso se dá não pelo efeito
substitutivo da decisão “homologatória” da desistência (até porque nem há
necessidade de homologação, como visto), e sim pela consolidação da decisão
recorrida desfavorável ao sujeito passivo (a parte assume como certa e aquiesce
com a decisão recorrida), nos termos do § 4º do artigo 133, não cabendo
cogitar-se em “ato declaratório da definitividade do crédito, dotado de
conteúdo resolutivo do mérito da discussão, em decorrência da configuração da
renúncia ao direito.”
Tal
concessão sintática e semântica seria extrapolar, em muito, o que dispõe o
próprio Ricarf sobre o assunto e o sentido e alcance da desistência e renúncia
recursal. Igualmente, não é possível concluir que 2) “essa
renúncia tem como efeito o reconhecimento material da correção do ato
administrativo objeto de insurgência recursal”, na medida em que o contribuinte
não fica impedido de rediscutir a matéria no âmbito judicial, vale dizer, não
há formação de coisa julgada capaz de gerar pressuposto processual negativo.
Portanto,
se a ideia (negociada) da Lei nº 14.689/2023 era eliminar conflitos,
o efeito perverso do utilitarismo processual que vem sendo praticado no Carf
será exatamente o contrário. Para concluir, se fosse verdade que a decisão
“homologatória da desistência qualificada” no Carf gerasse um ato dotado de
conteúdo de mérito, com a consequente substituição (desfazimento) da decisão
por voto de qualidade recorrida, tornando definitivo o crédito tributário, não
faria qualquer sentido a CSRF prosseguir com o julgamento dos Recursos
Especiais da PGFN, bastando que fosse “certificada” a definitividade do crédito
tributário, já que tornada “insubsistentes todas as decisões que lhe
forem favoráveis.” Não nos parece que é bem assim.
Rodrigo Massud - sócio do Choaib, Paiva e Justo Advogados; advogado, mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC-Cogeae, professor dos cursos de especialização em Direito Tributário e extensão em “Processo Tributário Analítico” do Ibet e pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.
[1] “Art. 25. (…)
§9º-A. Ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º deste artigo.”
“Art. 25-A. Na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º do art. 25 deste Decreto, e desde que haja a efetiva manifestação do contribuinte para pagamento no prazo de 90 (noventa) dias, serão excluídos, até a data do acordo para pagamento, os juros de mora de que trata o art. 13 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995.
§1º. O pagamento referido no caput deste artigo poderá ser realizado em até 12 (doze) parcelas, mensais e sucessivas, corrigidas nos termos do art. 13 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995, e abrangerá o montante principal do crédito tributário. (…)
§3º. Para efeito do disposto no § 1º deste artigo, admite-se a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de titularidade do sujeito passivo, de pessoa jurídica controladora ou controlada, de forma direta ou indireta, ou de sociedades que sejam controladas direta ou indiretamente por uma mesma pessoa jurídica, apurados e declarados à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, independentemente do ramo de atividade.”
[2] https://www.conjur.com.br/2024-fev-21/recursos-especiais-contra-decisoes-por-voto-de-qualidade-e-hora-de-jogar-a-toalha/, consultado em 27/03/2024.
[3] Instrumentalismo aqui, não no sentido utilitarista que caracteriza determinada fase histórica do processo civil, mas sim no sentido de reinserção das normas processuais no plano do direito material, refletindo sua natureza (do direito processual) de veículo indutor de efetividade e segurança jurídica, responsável, inclusive, por conter arbítrios decisórios que, no caso em análise, podem ser traduzidos em interesses meramente arrecadatórios (processo enquanto fim em si mesmo).
[4] https://oantagonista.com.br/brasil/haddad-compara-representantes-dos-contribuintes-no-carf-a-detentos/, consultado em 27/03/2024.
[5] Assim é que se excluiu da regra as discussões sobre solidariedade, despachos decisórios, matéria de natureza processual, conversões em diligência, embargos de declaração e processos aduaneiros.
[6] https://www.conjur.com.br/2023-fev-14/governo-oab-fecham-acordo-volta-voto-qualidade/, consultado em 27/03/2024.
[7] https://www.jota.info/legislativo/voto-de-qualidade-no-carf-governo-negociou-com-lira-votar-pl-antes-que-mp-caduque-14042023, consultado em 27/03/24.
[8] Os processos administrativos julgados no período de vigência da MP 1160, inclusive, foram abarcados pelo regime de pagamento instituído pela Lei nº 14.689/23, conforme disposto em seu art. 16, assim como os casos judicializados e pendentes de apreciação de mérito pelo TRF competente (art. 15).
[9] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/servicos/orientacoes-contribuintes/Revisao%20de%20Divida%20Inscrita%20%28PRDI%29, consultado em 27/03/2024.
[10] “Art. 998. O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso.
Parágrafo único. A desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos.”
“Art. 999. A renúncia ao direito de recorrer independe da aceitação da outra parte.”
[11] “Art. 1.008. O julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso.”
[12] No mesmo sentido REsp 627.022, REsp 435.688, AgRg no REsp 319.894. E porque manifestamente adequada à discussão objeto deste artigo, vale a transcrição de parte do voto da min. Eliana Calmon em que foi promovida a distinção entre os institutos da desistência da ação, do recurso, a renúncia e os efeitos para fins de coisa julgada, objeto do REsp 555.139:
“Primeiramente, necessária a distinção entre os diversos institutos processuais:
Desistência da ação – somente pode ser deferida até a prolação da sentença; após a citação apenas com a anuência do réu ou se este não anuir sem motivo justificado, a critério do magistrado. É um instituto que tem natureza eminentemente processual, acarreta a extinção do processo sem julgamento do mérito, de modo que a demanda pode ser novamente proposta; se existirem depósitos judiciais, estes poderão ser levantados pela parte autora.
Desistência do recurso – somente tem direito à desistência do recurso a parte que recorreu; nos termos do art. 501 do CPC, desnecessária a anuência do recorrido ou dos litisconsortes e somente pode ser formulado o pedido até o julgamento do recurso; nesta hipótese, prevalece a decisão imediatamente anterior e acarreta a extinção do feito nos termos do art. 269, I do CPC (extinção do processo com julgamento do mérito).
Renúncia – é ato privativo do autor, pode ser exercido em qualquer tempo ou grau de jurisdição, independentemente da anuência da parte contrária; enseja a extinção do feito nos termos do art. 269, V do CPC (extinção com julgamento do mérito), impedindo a propositura de qualquer outra ação sobre o mesmo direito; é instituto de natureza material, cujos efeitos são os mesmos da improcedência da ação e, em havendo depósitos judiciais, estes deverão ser convertidos em renda da União; equivale, às avessas, ao reconhecimento do pedido pelo réu. (…)”
[13] “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.”
[14] RICARF. “Art. 59. Aos Presidentes de Câmara incumbe: (…)
XVI – declarar a renúncia à instância administrativa, solicitada expressamente pelo sujeito passivo, quando se tratar de concomitância de discussão administrativa com processo judicial, relativa à totalidade do crédito tributário do processo; e”
[15] “Art. 1.000. A parte que aceitar expressa ou tacitamente a decisão não poderá recorrer.
Parágrafo único. Considera-se aceitação tácita a prática, sem nenhuma reserva, de ato incompatível com a vontade de recorrer.”
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