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quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Pandemia causa IPO?

As empresas que pretendem ter suas ações negociadas na bolsa ou no mercado de balcão na B3, que é a bolsa de valores do Brasil, precisam ser registradas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e cumprir todas as exigências que, aliás, não são poucas. A Instrução CVM no.480/2009 estabelece as regras de registro de emissões, enquanto o registro da oferta pública de distribuição de valores mobiliários é regulado pela Instrução no. 400/2003.

Quando uma empresa lista suas ações na bolsa pela primeira vez, tornando-se uma empresa aberta, ou pública, diz-se que fez uma Oferta Inicial de Ações, mas geralmente o mercado usa a sigla em inglês, IPO ou Initial Public Offering.

O processo de lançamento de ações, seja pela primeira vez ou não, envolve, resumidamente, a empresa emitente e uma instituição financeira intermediadora (sociedade corretora, sociedade distribuidora, banco de investimento, ou banco múltiplo), denominada underwriter, em português subscritor, que é a coordenadora da operação, subscrevendo as ações para colocá-las no mercado.

O underwriter principal (coordenador) pode fazer um consórcio (em inglês, pool) com outros intermediários financeiros para ajudar na colocação das ações. As principais formas de subscrição são: 1) do tipo firme, quando o subscritor subscreve integralmente a emissão de ações para tentar revendê-las posteriormente ao público, nesse caso o risco da aceitação da emissão pelo mercado fica com o subscritor; 2) do tipo residual, quando o intermediário financeiro compromete-se a colocar as sobras de ações junto ao público em determinado período de tempo, após o qual ele próprio subscreve o total de ações não colocadas. Isto significa, que decorrido este prazo o underwriting se torna firme, como no caso anterior; 3) do tipo melhor esforço (em inglês, best effort), quando o subscritor assume o compromisso de realizar seu melhor esforço no sentido de colocar as ações ao público, mas não assume o compromisso de comprar, ele mesmo, as ações não vendidas.

A título de exemplo, em 1986, em pleno plano cruzado, a Cobrasma, fabricante de material ferroviário, preparou-se para um IPO cujo subscritor principal, coordenador principal da emissão, era o Bradesco, e os outros componentes do pool eram Crefisul e BCN. O IPO foi um fracasso e como a garantia não era do tipo best effort, o pool teve que comprar as ações da Cobrasma. O caso terminou na justiça, onde teve outros desdobramentos e acusações de corrupção, inclusive contra o sistema judiciário. Na ação principal, o pool acusava o emitente de ter inflado os lucros projetados, mesmo antevendo prejuízos. Vale lembrar que o subscritor tem acesso a todos os dados e projeções da empresam então, a alegação do pool tinha também certa fragilidade. A Cobrasma, em sua defesa, alegou que a derrocada do plano cruzado havia causado os prejuízos imprevisíveis.

O mercado de ações pode ser classificado em primário e secundário. Diz-se que o mercado é primário quando o dinheiro arrecadado, líquido de custos, vai para a empresa emitente. O mercado é dito secundário quando as ações mudam de mãos, sendo negociadas por seus proprietários para outros acionistas, os valores envolvidos apenas trocam de mãos, de um acionista para outro, sem ir para a empresa emitente para financiar, por exemplo, projetos de investimento. O mercado secundário é importante porque dá liquidez ao mercado primário.

O principal motivo para as empresas fazerem IPO’s é para ter acesso a capital. Vendendo ações, as empresas conseguem levantar recursos para seus projetos de investimento e expansão, aumentam sua base de acionistas e o capital próprio em seu balanço patrimonial, mas o fato de se tornarem públicas também permite que emitam debêntures e commercial papers que são títulos de dívida.

Ao abrir o capital a empresa também dá mais liquidez aos seus acionistas, pois permite que eles, com muita facilidade, se desfaçam de suas ações, ou comprem mais ações se assim o desejarem.

A empresa que abre o capital é obrigada a ter uma maior transparência em suas operações e um grau de governança corporativa mais elevado, isso causa um ganho de credibilidade junto ao mercado. Além disso, a maior exposição à mídia causa aumento da visibilidade da empresa. A soma desses fatores leva a um ganho de imagem para a empresa.

Ficamos sabendo, por exemplo, a fascinante história de vida de dois empreendedores brasileiros, que até agora eram praticamente desconhecidos do grande público, como Sergio Zimerman, fundador da Petz, que queria ser franqueado da Cobasi, mas descobriu que a Cobasi não trabalhava com franquias e então fundou a Petz; ou Ilson Mateus Rodrigues, fundador do Grupo Mateus, que já foi até garimpeiro em Serra Pelada, quando era jovem.

Há um fenômeno relativamente frequente em IPO’s que é denominado underpricing (subprecificação, em português). Isto significa que o preço estipulado para as ações no lançamento foi baixo demais (underpriced). A consequência imediata disso é que acionistas que participaram da IPO, fizeram reservas e compraram as ações no lançamento, têm uma valorização substancial logo no primeiro dia de pregão, quando outros participantes do mercado percebem que o preço estava baixo demais e se mostram dispostos a pagar mais pelas ações. A recente IPO da Petz, rede de megalojas de produtos para animais de estimação, no dia 11/09/2020, foi um exemplo desse fenômeno, a ação foi lançada a R13,75 e fechou o dia cotada a R16,75, uma valorização de quase 22% em um único dia! Verdade que o preço caiu um pouco no segundo dia, sinalizando que, no primeiro dia, havia ocorrido um overshooting, fenômeno que acontece quando o entusiasmo dos investidores os leva a praticar preços acima do que seria razoável. Nesse caso, além do preço estabelecido para o lançamento ter sido baixo demais, aparentemente, também contribuíram para essa valorização um bom roadshow e um departamento de marketing astuto, que usou um cão da raça Border Colie, treinado para isso, para apertar o botão do início de negociações, causando verdadeiro furor entre os investidores.

É necessário lembrar que a empresa emissora tem por objetivo vender suas ações pelo preço mais alto que conseguir, mas alguns fatores colocam freios nesse desejo. Se o preço for alto demais, pode ocorrer que as ações não encontrem compradores na quantidade que se imaginava e muitas ações podem não encontrar compradores, ou demorar muito para encontrar compradores. Além disso, o underwriter pressiona por um preço mais baixo, pois isso facilita seu trabalho de colocar as ações no mercado rapidamente. Vale a analogia com um corretor de imóveis, o proprietário desejando vender o apartamento pelo preço mais alto que puder, enquanto o corretor deseja facilitar sua vida e ganhar rapidamente sua comissão sobre a venda, então pressiona por um preço mais baixo.

O fenômeno do underpricing atraí especuladores para os lançamentos de ação que não pretendem se tornar acionistas da empresa emissora, mas pretendem auferir lucros rápidos nos primeiros pregões de negociação, estes operadores são denominados de flippers no mercado acionário, pois entram e saem rapidamente.

Por outro lado, muitos analistas mais conservadores não recomendam investimentos em IPO’s porque consideram que a assimetria de informação é grande demais, aumentado muito o risco do investidor, pois não há ainda histórico de comportamento de preços da ação no mercado e, se já é difícil escolher a ação certa quando se têm estas informações, quanto mais quando não se têm. Um exemplo dessa euforia exuberante que deu errado foram as ações das empresas do grupo X, do empresário Eike Batista.

Outro fenômeno que chama à atenção do meio acadêmico é o fato dos IPO’s andarem em manada, isto é, há anos com poucas IPO’s e anos com muitas IPO’s. Os acadêmicos têm-se debruçado sobre isso para tentar descobrir o que faz com que este fenômeno aconteça. O primeiro trabalho publicado sobre o assunto, em 1975, é de autoria dos pesquisadores Ibbotson e Jaffe. Por que em determinados anos há poucos e em outros anos há tantos IPO’s?

Embora diversas maneiras (procedimentos metodológicos) tenham sido utilizadas para estudar o fenômeno, parece não haver ainda uma resposta definitiva, entretanto algumas conclusões importantes já podem ser tiradas. Os acadêmicos descobriram que em anos com poucos lançamentos e em anos com muitos lançamentos, as empresas que fazem os IPO’s não divergem muito umas das outras, isto é, são empresas semelhantes. Não se pode afirmar, por exemplo, que as empresas piores escolhem anos menos concorridos de IPO’s para fazer seus lançamentos, ou vice-versa. Por outro lado, parece consensual que fatores macroeconômicos influem na decisão das empresas de abrir o capital. As empresas preferem mercados aquecidos (em inglês, bullish) para se tornar públicas, evitando mercados em queda (em inglês, bearish). Um grau maior de incerteza no mercado também parece afugentar os IPO’s. Assim, variáveis macroeconômicas como crescimento do PIB, nível do mercado acionário brasileiro medido pelo Ibovespa, volatilidade do mercado acionário brasileiro, taxa Selic, nível do mercado acionário norte americano, e o risco país, já foram testadas pelos acadêmicos e mostraram-se relevantes para determinar a quantidade de IPO’s em determinado período de tempo. Interessante notar que variáveis ligadas ao mercado norte americano também foram utilizadas, bem como a percepção de risco sobre o Brasil dos investidores internacionais, isto porque os estrangeiros (ou simplesmente investidores não-residentes) costumam ter forte participação na bolsa brasileira.

Os analistas previam, no início do ano, que este ano seria o ano das IPO’s. Vários fatores apontavam para isso. Dentre estes fatores, a recuperação da economia, depois de uma longa recessão que vem desde 2014, e o bull market do momento, o principal índice da B3, o Ibovespa, bateu 119.000 pontos em 23 de janeiro. Como dito anteriormente, um mercado aquecido incentiva empresas a abrir o capital, pois os administradores acreditam que nesse caso podem obter melhores preços pelas ações da empresa. O início de recuperação da economia, no ano passado, também fez com que as empresas apresentassem melhores resultados financeiros em seus balanços e isso anima os investidores. O sucesso da bolsa em 2019, refletido inclusive, no número de IPO’s do ano passado, indicava mesmo um 2020 espetacular.

Os juros baixos, a taxa Selic em 2% ao ano - que é recorde histórico de mínima -, fez com que os investidores, mesmo os pequenos investidores, procurassem investimentos de retorno mais alto, ainda que com risco maior. Houve uma migração grande de investidores para a bolsa: havia 1,69 milhão de investidores pessoa física no fim de 2019 e em agosto de 2020 já eram 2,96 milhão.

Mas então veio a pandemia, com o isolamento social, o fechamento de praticamente todos os estabelecimentos de serviços, além de muitas lojas e indústrias, o índice Ibovespa despencando, a ameaça de uma recessão jamais vista. Por tudo que dissemos até aqui, este seria um cenário que indicaria o cancelamento de grande parte das IPO’s previstas para o ano, por causa da queda da bolsa no primeiro momento da pandemia e, principalmente, por causa da incerteza que pairava no ar. De fato, depois de um começo promissor, alguns analistas começaram a dizer que a onda de IPO’s tinha acabado. Previam-se cancelamentos, inclusive do Grupo Mateus, cujo IPO movimentou, na sexta feira, 09 de outubro, nada menos do que R4,6 bilhões.

Não foi o que aconteceu, aos poucos o mercado percebeu que o mundo não havia acabado, que a vida continuava. O índice Ibovespa voltou a subir e, mesmo não atingindo os recordes anteriores, sinalizava um certo otimismo do mercado! As lojas que tinham comércio eletrônico voltaram a vender e até a indústria automobilística se adaptou, fazendo vendas on-line e levando os veículos às casas dos interessados. O governo também agiu para evitar a recessão e despejou uma enxurrada de dinheiro na economia, por meio do auxílio emergencial. Esse dinheiro fez as vendas de eletrodomésticos da linha branca aumentarem, bem como as vendas de alimentos e material de construção. O varejo teve um mês de setembro melhor que o de 2019 e os analistas começaram a falar em uma recuperação em "V", embora a situação fiscal do país ainda seja uma grande preocupação.

O resultado parcial até o momento é favorável ao ano de 2020, foram 16 IPO’s até agora, já é a maior resultado em 13 anos! Há ainda 41 empresas esperando na fila da CVM, inclusive algumas startups de tecnologia (Enjoei.com, Méliuz e Wine), que antes costumavam abrir o capital nas bolsas norte-americanas e agora estão com estreias programadas.

A explicação mais provável para esse bom resultado das IPO’s é que os empresários e o mercado provavelmente estão enxergando que os fundamentos macroeconômicos do país não mudaram e continuam bons, apesar da crise momentânea. Houve desistências, é certo, dentre elas a Caixa Seguridade, que era a menina dos olhos do mercado, a Compass, subsidiária da Cosan no segmento de gás, a BR Partners, banco de investimentos, a You Inc, incorporadora e, recentemente, as Lojas Havan, do empresário Luciano Hang. No caso da Havan, o empresário esperava captar R$100 bilhões, mas o mercado precificou o negócio entre R$ 50 e R$ 70 bilhões o que fez com que o empresário adiasse sua decisão de abrir o capital. Um dos motivos desta precificação tão discrepante é que as Lojas Havan têm vendas on-line insipientes e isto foi visto pelo mercado como uma fraqueza significativa. O IPO do Grupo Mateus, foi o maior do ano, a empresa vendeu cada ação a R$ 8,97, o piso da faixa, embora alguns analistas dissessem que mesmo o preço mínimo estava elevado e que deveria ser de R$ 7,49, baseando sua afirmação em uma avaliação por múltiplos que compara a Mateus com a Walmart dos EUA. Constatou-se, entretanto, no primeiro dia de negociação, que o preço variou de um mínimo de R$ 8,77 a um máximo de R$ 9,44. O IPO da Mateus de R$ 4,6 bilhões superou o da Hidrovias do Brasil que, em setembro, levantou R$ 3,4 bilhões.

Retomando nossa pergunta do título, pandemia causa IPO? Certamente que não, mas, embora 2020 provavelmente não vá conseguir bater o recorde de IPO’s de 2007, já é o melhor resultado dos últimos anos e obtido no meio de uma pandemia que causou uma recessão sem precedentes e uma incerteza nunca vista.



Roberto Borges Kerr - doutor em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em Administração de Empresas pela FEA-USP, Engenheiro Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e bacharel em Administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Finanças Empresariais e atuando principalmente nos temas: Avaliação de Empresas, Derivativos, Mercados de Capitais, Estudos de Evento, Decisões de Investimento (Opções Reais), Fusões e Aquisições e Desenvolvimento Sustentável.


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