As empresas que pretendem ter suas ações negociadas na bolsa ou no mercado de balcão na B3, que é a bolsa de valores do Brasil, precisam ser registradas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e cumprir todas as exigências que, aliás, não são poucas. A Instrução CVM no.480/2009 estabelece as regras de registro de emissões, enquanto o registro da oferta pública de distribuição de valores mobiliários é regulado pela Instrução no. 400/2003.
Quando uma empresa lista suas ações na bolsa pela
primeira vez, tornando-se uma empresa aberta, ou pública, diz-se que fez uma
Oferta Inicial de Ações, mas geralmente o mercado usa a sigla em inglês, IPO ou
Initial Public Offering.
O processo de lançamento de ações, seja pela
primeira vez ou não, envolve, resumidamente, a empresa emitente e uma
instituição financeira intermediadora (sociedade corretora, sociedade
distribuidora, banco de investimento, ou banco múltiplo), denominada underwriter,
em português subscritor, que é a coordenadora da operação, subscrevendo as
ações para colocá-las no mercado.
O underwriter principal (coordenador) pode
fazer um consórcio (em inglês, pool) com outros intermediários
financeiros para ajudar na colocação das ações. As principais formas de
subscrição são: 1) do tipo firme, quando o subscritor subscreve
integralmente a emissão de ações para tentar revendê-las posteriormente ao
público, nesse caso o risco da aceitação da emissão pelo mercado fica com o
subscritor; 2) do tipo residual, quando o intermediário financeiro
compromete-se a colocar as sobras de ações junto ao público em determinado
período de tempo, após o qual ele próprio subscreve o total de ações não
colocadas. Isto significa, que decorrido este prazo o underwriting se
torna firme, como no caso anterior; 3) do tipo melhor esforço (em
inglês, best effort), quando o subscritor assume o compromisso de
realizar seu melhor esforço no sentido de colocar as ações ao público, mas não
assume o compromisso de comprar, ele mesmo, as ações não vendidas.
A título de exemplo, em 1986, em pleno plano
cruzado, a Cobrasma, fabricante de material ferroviário, preparou-se para um
IPO cujo subscritor principal, coordenador principal da emissão, era o
Bradesco, e os outros componentes do pool eram Crefisul e BCN. O IPO foi
um fracasso e como a garantia não era do tipo best effort, o pool teve
que comprar as ações da Cobrasma. O caso terminou na justiça, onde teve outros
desdobramentos e acusações de corrupção, inclusive contra o sistema judiciário.
Na ação principal, o pool acusava o emitente de ter inflado os lucros
projetados, mesmo antevendo prejuízos. Vale lembrar que o subscritor tem acesso
a todos os dados e projeções da empresam então, a alegação do pool tinha
também certa fragilidade. A Cobrasma, em sua defesa, alegou que a derrocada do
plano cruzado havia causado os prejuízos imprevisíveis.
O mercado de ações pode ser classificado em
primário e secundário. Diz-se que o mercado é primário quando o dinheiro
arrecadado, líquido de custos, vai para a empresa emitente. O mercado é dito
secundário quando as ações mudam de mãos, sendo negociadas por seus
proprietários para outros acionistas, os valores envolvidos apenas trocam de
mãos, de um acionista para outro, sem ir para a empresa emitente para
financiar, por exemplo, projetos de investimento. O mercado secundário é
importante porque dá liquidez ao mercado primário.
O principal motivo para as empresas fazerem IPO’s
é para ter acesso a capital. Vendendo ações, as empresas conseguem levantar
recursos para seus projetos de investimento e expansão, aumentam sua base de
acionistas e o capital próprio em seu balanço patrimonial, mas o fato de se
tornarem públicas também permite que emitam debêntures e commercial papers
que são títulos de dívida.
Ao abrir o capital a empresa também dá mais
liquidez aos seus acionistas, pois permite que eles, com muita facilidade, se
desfaçam de suas ações, ou comprem mais ações se assim o desejarem.
A empresa que abre o capital é obrigada a ter uma
maior transparência em suas operações e um grau de governança corporativa mais
elevado, isso causa um ganho de credibilidade junto ao mercado. Além disso, a
maior exposição à mídia causa aumento da visibilidade da empresa. A soma desses
fatores leva a um ganho de imagem para a empresa.
Ficamos sabendo, por exemplo, a fascinante
história de vida de dois empreendedores brasileiros, que até agora eram
praticamente desconhecidos do grande público, como Sergio Zimerman, fundador da
Petz, que queria ser franqueado da Cobasi, mas descobriu que a Cobasi não
trabalhava com franquias e então fundou a Petz; ou Ilson Mateus Rodrigues,
fundador do Grupo Mateus, que já foi até garimpeiro em Serra Pelada, quando era
jovem.
Há um fenômeno relativamente frequente em IPO’s
que é denominado underpricing (subprecificação, em português). Isto
significa que o preço estipulado para as ações no lançamento foi baixo demais (underpriced).
A consequência imediata disso é que acionistas que participaram da IPO, fizeram
reservas e compraram as ações no lançamento, têm uma valorização substancial
logo no primeiro dia de pregão, quando outros participantes do mercado percebem
que o preço estava baixo demais e se mostram dispostos a pagar mais pelas
ações. A recente IPO da Petz, rede de megalojas de produtos para animais de
estimação, no dia 11/09/2020, foi um exemplo desse fenômeno, a ação foi lançada
a R﹩13,75 e fechou o dia
cotada a R﹩16,75, uma valorização de quase 22% em um único dia! Verdade
que o preço caiu um pouco no segundo dia, sinalizando que, no primeiro dia,
havia ocorrido um overshooting, fenômeno que acontece quando o
entusiasmo dos investidores os leva a praticar preços acima do que seria
razoável. Nesse caso, além do preço estabelecido para o lançamento ter sido
baixo demais, aparentemente, também contribuíram para essa valorização um bom roadshow
e um departamento de marketing astuto, que usou um cão da raça Border
Colie, treinado para isso, para apertar o botão do início de negociações,
causando verdadeiro furor entre os investidores.
É necessário lembrar que a empresa emissora tem
por objetivo vender suas ações pelo preço mais alto que conseguir, mas alguns
fatores colocam freios nesse desejo. Se o preço for alto demais, pode ocorrer
que as ações não encontrem compradores na quantidade que se imaginava e muitas
ações podem não encontrar compradores, ou demorar muito para encontrar
compradores. Além disso, o underwriter pressiona por um preço mais
baixo, pois isso facilita seu trabalho de colocar as ações no mercado
rapidamente. Vale a analogia com um corretor de imóveis, o proprietário
desejando vender o apartamento pelo preço mais alto que puder, enquanto o
corretor deseja facilitar sua vida e ganhar rapidamente sua comissão sobre a
venda, então pressiona por um preço mais baixo.
O fenômeno do underpricing atraí
especuladores para os lançamentos de ação que não pretendem se tornar
acionistas da empresa emissora, mas pretendem auferir lucros rápidos nos
primeiros pregões de negociação, estes operadores são denominados de flippers
no mercado acionário, pois entram e saem rapidamente.
Por outro lado, muitos analistas mais
conservadores não recomendam investimentos em IPO’s porque consideram que a
assimetria de informação é grande demais, aumentado muito o risco do
investidor, pois não há ainda histórico de comportamento de preços da ação no
mercado e, se já é difícil escolher a ação certa quando se têm estas
informações, quanto mais quando não se têm. Um exemplo dessa euforia exuberante
que deu errado foram as ações das empresas do grupo X, do empresário Eike
Batista.
Outro fenômeno que chama à atenção do meio
acadêmico é o fato dos IPO’s andarem em manada, isto é, há anos com poucas
IPO’s e anos com muitas IPO’s. Os acadêmicos têm-se debruçado sobre isso para
tentar descobrir o que faz com que este fenômeno aconteça. O primeiro trabalho
publicado sobre o assunto, em 1975, é de autoria dos pesquisadores Ibbotson e
Jaffe. Por que em determinados anos há poucos e em outros anos há tantos IPO’s?
Embora diversas maneiras (procedimentos metodológicos)
tenham sido utilizadas para estudar o fenômeno, parece não haver ainda uma
resposta definitiva, entretanto algumas conclusões importantes já podem ser
tiradas. Os acadêmicos descobriram que em anos com poucos lançamentos e em anos
com muitos lançamentos, as empresas que fazem os IPO’s não divergem muito umas
das outras, isto é, são empresas semelhantes. Não se pode afirmar, por exemplo,
que as empresas piores escolhem anos menos concorridos de IPO’s para fazer seus
lançamentos, ou vice-versa. Por outro lado, parece consensual que fatores
macroeconômicos influem na decisão das empresas de abrir o capital. As empresas
preferem mercados aquecidos (em inglês, bullish) para se tornar
públicas, evitando mercados em queda (em inglês, bearish). Um grau maior
de incerteza no mercado também parece afugentar os IPO’s. Assim, variáveis
macroeconômicas como crescimento do PIB, nível do mercado acionário brasileiro
medido pelo Ibovespa, volatilidade do mercado acionário brasileiro, taxa Selic,
nível do mercado acionário norte americano, e o risco país, já foram testadas
pelos acadêmicos e mostraram-se relevantes para determinar a quantidade de
IPO’s em determinado período de tempo. Interessante notar que variáveis ligadas
ao mercado norte americano também foram utilizadas, bem como a percepção de
risco sobre o Brasil dos investidores internacionais, isto porque os
estrangeiros (ou simplesmente investidores não-residentes) costumam ter forte
participação na bolsa brasileira.
Os analistas previam, no início do ano, que este
ano seria o ano das IPO’s. Vários fatores apontavam para isso. Dentre estes
fatores, a recuperação da economia, depois de uma longa recessão que vem desde
2014, e o bull market do momento, o principal índice da B3, o Ibovespa,
bateu 119.000 pontos em 23 de janeiro. Como dito anteriormente, um mercado
aquecido incentiva empresas a abrir o capital, pois os administradores
acreditam que nesse caso podem obter melhores preços pelas ações da empresa. O
início de recuperação da economia, no ano passado, também fez com que as
empresas apresentassem melhores resultados financeiros em seus balanços e isso
anima os investidores. O sucesso da bolsa em 2019, refletido inclusive, no
número de IPO’s do ano passado, indicava mesmo um 2020 espetacular.
Os juros baixos, a taxa Selic em 2% ao ano - que
é recorde histórico de mínima -, fez com que os investidores, mesmo os pequenos
investidores, procurassem investimentos de retorno mais alto, ainda que com
risco maior. Houve uma migração grande de investidores para a bolsa: havia 1,69
milhão de investidores pessoa física no fim de 2019 e em agosto de 2020 já eram
2,96 milhão.
Mas então veio a pandemia, com o isolamento
social, o fechamento de praticamente todos os estabelecimentos de serviços,
além de muitas lojas e indústrias, o índice Ibovespa despencando, a ameaça de
uma recessão jamais vista. Por tudo que dissemos até aqui, este seria um
cenário que indicaria o cancelamento de grande parte das IPO’s previstas para o
ano, por causa da queda da bolsa no primeiro momento da pandemia e,
principalmente, por causa da incerteza que pairava no ar. De fato, depois de um
começo promissor, alguns analistas começaram a dizer que a onda de IPO’s tinha
acabado. Previam-se cancelamentos, inclusive do Grupo Mateus, cujo IPO
movimentou, na sexta feira, 09 de outubro, nada menos do que R﹩4,6 bilhões.
Não foi o que aconteceu, aos poucos o mercado
percebeu que o mundo não havia acabado, que a vida continuava. O índice
Ibovespa voltou a subir e, mesmo não atingindo os recordes anteriores, sinalizava
um certo otimismo do mercado! As lojas que tinham comércio eletrônico voltaram
a vender e até a indústria automobilística se adaptou, fazendo vendas on-line e
levando os veículos às casas dos interessados. O governo também agiu para
evitar a recessão e despejou uma enxurrada de dinheiro na economia, por meio do
auxílio emergencial. Esse dinheiro fez as vendas de eletrodomésticos da linha
branca aumentarem, bem como as vendas de alimentos e material de construção. O
varejo teve um mês de setembro melhor que o de 2019 e os analistas começaram a
falar em uma recuperação em "V", embora a situação fiscal do país
ainda seja uma grande preocupação.
O resultado parcial até o momento é favorável ao
ano de 2020, foram 16 IPO’s até agora, já é a maior resultado em 13 anos! Há
ainda 41 empresas esperando na fila da CVM, inclusive algumas startups
de tecnologia (Enjoei.com, Méliuz e Wine), que antes costumavam abrir o capital
nas bolsas norte-americanas e agora estão com estreias programadas.
A explicação mais provável para esse bom
resultado das IPO’s é que os empresários e o mercado provavelmente estão
enxergando que os fundamentos macroeconômicos do país não mudaram e continuam
bons, apesar da crise momentânea. Houve desistências, é certo, dentre elas a Caixa
Seguridade, que era a menina dos olhos do mercado, a Compass, subsidiária da
Cosan no segmento de gás, a BR Partners, banco de investimentos, a You Inc,
incorporadora e, recentemente, as Lojas Havan, do empresário Luciano Hang. No
caso da Havan, o empresário esperava captar R$100 bilhões, mas o mercado
precificou o negócio entre R$ 50 e R$ 70 bilhões o que fez com que o empresário
adiasse sua decisão de abrir o capital. Um dos motivos desta precificação tão
discrepante é que as Lojas Havan têm vendas on-line insipientes e isto foi
visto pelo mercado como uma fraqueza significativa. O IPO do Grupo Mateus, foi
o maior do ano, a empresa vendeu cada ação a R$ 8,97, o piso da faixa, embora
alguns analistas dissessem que mesmo o preço mínimo estava elevado e que
deveria ser de R$ 7,49, baseando sua afirmação em uma avaliação por múltiplos
que compara a Mateus com a Walmart dos EUA. Constatou-se, entretanto, no
primeiro dia de negociação, que o preço variou de um mínimo de R$ 8,77 a um
máximo de R$ 9,44. O IPO da Mateus de R$ 4,6 bilhões superou o da Hidrovias do
Brasil que, em setembro, levantou R$ 3,4 bilhões.
Retomando nossa pergunta do título, pandemia
causa IPO? Certamente que não, mas, embora 2020 provavelmente não vá conseguir
bater o recorde de IPO’s de 2007, já é o melhor resultado dos últimos anos e
obtido no meio de uma pandemia que causou uma recessão sem precedentes e uma
incerteza nunca vista.
Roberto Borges Kerr - doutor em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em Administração de Empresas pela FEA-USP, Engenheiro Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e bacharel em Administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Finanças Empresariais e atuando principalmente nos temas: Avaliação de Empresas, Derivativos, Mercados de Capitais, Estudos de Evento, Decisões de Investimento (Opções Reais), Fusões e Aquisições e Desenvolvimento Sustentável.
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