Experimento
em ratos realizado na USP de Ribeirão Preto revela que o "hormônio do
bem-estar" atua na modulação do sistema imune, sendo capaz de induzir efeitos
anti-inflamatórios e prevenir complicações como queda da temperatura corporal e
da pressão arterial (imagem: NIDA / NIH)
Conhecida como o “hormônio do bem-estar”, por ser
relacionada à regulação do humor, a serotonina também é capaz de modular a
inflamação sistêmica severa, como a que ocorre durante a sepse. Artigo
publicado na revista Brain, Behavior, and Immunity descreve esse
neurotransmissor, pela primeira vez, como um possível mediador da interação
neuroimune, capaz de amenizar a inflamação não só no sistema nervoso central
como em todo o organismo.
O estudo, conduzido por pesquisadores
da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FORP-USP), da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP) e da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), mostrou que a administração da
substância no sistema nervoso central de ratos teve efeitos anti-inflamatórios,
diminuindo os níveis de moléculas sinalizadoras do sistema imune (citocinas
pró-inflamatórias) no plasma sanguíneo e no baço dos animais. A serotonina
preveniu ainda a hipotermia e a queda da pressão arterial. O trabalho é
resultado de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP.
“Não se tinha conhecimento até então de que a
serotonina poderia inibir a inflamação sistêmica. Concluímos isso em dois estudos,
um publicado em 2017, sobre inflamação sistêmica leve – como a que ocorre
durante uma gripe ou infecção urinária – e agora este, sobre a inflamação
sistêmica severa, que nos surpreendeu ainda mais por termos observado um efeito
tão positivo em um quadro muito mais grave, que corresponde à sepse”, disse Luiz Guilherme Branco, professor do Programa de
Pós-Graduação em Fisiologia da FMRP-USP e autor do artigo.
Doença letal
Durante a sepse, observa-se uma resposta inflamatória
desregulada do organismo na presença de um agente infeccioso, ou seja, o
sistema de defesa passa a combater o patógeno de forma exagerada. O quadro
inclui aumento ou redução da temperatura corporal, queda da pressão arterial e
consequente redução da irrigação sanguínea, levando à disfunção de vários
órgãos.
Nesses casos, a falência dos órgãos é agravada pela
queda acentuada e repentina da pressão arterial, o estágio mais grave da doença,
conhecido como choque séptico. A gravidade da sepse também está nas
estatísticas: trata-se da doença que mais mata em Unidades de Terapia Intensiva
(UTIs) no Brasil (leia mais em: http://agencia.fapesp.br/26621).
Para investigar o papel da serotonina na interação
neuroimune, os pesquisadores realizaram dois tipos de experimento. No primeiro,
com modelos de inflamação sistêmica leve, a substância foi injetada dentro do
sistema nervoso central dos ratos. Meia hora depois da injeção intracraniana,
os animais receberam também uma quantidade baixa (100 µg/kg) de
lipopolissacarídeo – toxina encontrada na membrana de algumas bactérias.
Na comparação entre os animais com serotonina e o
grupo controle (que recebeu apenas as toxinas), observou-se que o neurotransmissor
apresentou efeitos anti-inflamatórios tanto no sistema nervoso central quanto
no periférico, sendo capaz de reduzir a febre causada pela inflamação sistêmica
leve.
No artigo publicado este ano, os pesquisadores
relatam o mesmo experimento, porém com a administração de uma dose 15 vezes
maior da toxina (1,5 mg/kg), o que conferiu aos animais um quadro de inflamação
sistêmica severa semelhante ao da sepse. Nesse experimento, além de reduzir os
níveis de citocinas pró-inflamatórias, o neurotransmissor foi capaz de prevenir
a hipotermia e a hipotensão causadas pela inflamação sistêmica severa.
“Acreditamos que o efeito da serotonina se dá pela
ativação de um reflexo anti-inflamatório que ocorre durante a inflamação
sistêmica. Esse reflexo consiste na noção de que a atividade neuronal modula a
imunidade, atuando por meio de conexões neurais do cérebro para outros órgãos,
sobretudo o baço, reduzindo a produção de citocinas inflamatórias”, disse Clarissa Mota, primeira autora do artigo e
pós-doutoranda na FMRP-USP, com bolsa da FAPESP.
De acordo com a pesquisadora, o objetivo para os
próximos estudos é investigar, de modo mais aprofundado, os mecanismos relacionados
às regiões cerebrais que produzem serotonina ou que comprometam a inflamação
sistêmica.
“A descoberta de que a serotonina também atua na modulação
da inflamação abre caminho para estudos referentes ao desenvolvimento de novas
terapias contra a sepse e outras desordens inflamatórias. Estamos juntando as
peças de um quebra-cabeça para o melhor entendimento da fisiopatologia da
inflamação e das funções terapêuticas da serotonina. Há décadas, os sistemas
eram estudados em separado. Hoje, sabemos que o organismo é como uma rede
conectada, com todos os sistemas trabalhando em conjunto”, disse Mota.
Dessa forma, a serotonina, um produto do metabolismo
do triptofano, atua nessa rede conectada, desempenhando uma série de funções
dentro do cérebro e de outros órgãos. Por ser um neurotransmissor, a serotonina
opera como um mensageiro nas sinapses – a conexão entre os neurônios –,
modulando a comunicação. A atuação vai, portanto, desde a regulação de
comportamentos fisiológicos, como função do sono, respiração e humor, até a
coagulação de plaquetas, função gastrointestinal e, como foi comprovado pelos
pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, modulação do sistema imunológico.
Mota explica que por se tratar de um estudo inicial
para a investigação de mecanismos neurais da inflamação e de terapêuticas –
ambos pautados na serotonina – optou-se por fazer um teste de pré-tratamento.
“Experimentalmente, partimos da investigação dos
efeitos do pré-tratamento para a identificação do potencial da serotonina em
modular a inflamação. Agora que nossos estudos mostraram que a serotonina é
capaz de prevenir muitos efeitos da inflamação sistêmica, os nossos próximos
estudos devem ser pautados pela busca de um tratamento curativo, em vez de um
pré-tratamento [preventivo] para o melhor entendimento de como a serotonina
pode modular a inflamação”, disse Mota.
Antidepressivos e ansiolíticos
O potencial translacional do estudo foi destacado
em editorial assinado por Christoph Rummel, pesquisador da Universidade de
Giessen (Alemanha) que tem contribuído para o entendimento dos mecanismos
mediadores de vias de comunicação neuroimune durante a inflamação. “Há
potencial aplicação translacional para o uso de inibidores da recaptação de
serotonina [presente em medicamentos] para tratar os principais distúrbios
depressivos, bem como a sepse. Isso representa novas e emocionantes
possibilidades, que precisam ser investigadas”, escreveu Rummel no editorial.
Como explicaram os autores, ao injetar serotonina
no sistema nervoso central dos roedores, o experimento mimetizou a ação de
medicamentos antidepressivos e ansiolíticos que aumentam a disponibilidade
desse neurotransmissor no cérebro de pacientes.
“Inibidores de recaptação de serotonina têm sido
usados pela indústria farmacêutica para o tratamento de desordens
psiquiátricas, como ansiedade e depressão. São medicamentos que aumentam a
biodisponibilidade de serotonina na fenda sináptica do sistema nervoso central.
O que observamos no estudo foi que durante a inflamação sistêmica há uma queda
da produção de serotonina [endógena] pelo organismo. No estudo, a administração
de serotonina exógena reverteu parte desses sintomas da inflamação sistêmica”,
disse Branco.
O artigo Central serotonin prevents hypotension
and hypothermia and reduces plasma and spleen cytokine levels during systemic
inflammation (doi: 10.1016/j.bbi.2019.03.017), de Clarissa M.D. Mota,
Gabriela S. Borges, Mateus R. Amorim, Ruither O.G. Carolino, Marcelo E.
Batalhão, Janete A. Anselmo-Franci, Evelin C. Carnio, Luiz G.S. Branco, pode
ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0889159118307700?via%3Dihub.
O artigo Central serotonin attenuates
LPS-induced systemic inflammation (doi: 10.1016/j.bbi.2017.07.010), de
Clarissa M.D. Mota, Caroline Rodrigues-Santos, Rodrigo A.R. Fernández, Ruither
O.G. Carolino, José Antunes-Rodrigues, Janete A. Anselmo-Franci, Luiz G.S.
Branco, pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0889159117302179?via%3Dihub.
Maria Fernanda Ziegler
Agência FAPESP – http://agencia.fapesp.br/serotonina-inibe-inflamacao-sistemica-severa-como-a-que-ocorre-na-sepse/31720/
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