Os gregos indagaram muito sobre felicidade, ou sobre o melhor modo de viver a vida (eudaimonia), o que é quase a mesma coisa. Em Roma, os que podiam gastavam seu tempo. Ao seu fim, muitas vezes abrupto, dado que viviam perigosamente, os romanos tinham tirado o proveito possível da existência. Depois, o mundo fechou-se nas trevas da Idade Média. Felicidade só após a morte, numa fantasia chamada céu, junto a um censor universal.
A felicidade voltou a ser
assunto no século XVIII, o Iluminismo recuperou o tema. Obteve tal prestígio
que o filósofo Jeremy Bentham ambicionava uma fórmula que a possibilitasse ao
maior número possível de pessoas. A Constituição norte-americana – acredito que
a única no mundo com tal previsão – garantiu que o indivíduo a buscasse
(Declaração de Direitos de Virgínia, 1776).
A questão se me chegou há
muitos anos. Conversávamos, alguns garotos, e alguém indagou: “O que vocês
fariam se fossem morrer amanhã?”. Buscávamos resposta quando uma senhora
adiantou: “Eu daria um jeito de ser feliz”. Creio que fomos impactados pelo
modo dramático de gesto e de fala: era uma declaração e um desabafo; havia uma
postura de surpresa consigo mesma e a percepção de que uma tarefa urgente se
lhe apresentava. Ela falou para ninguém, mas ficou claro que falou para o
mundo.
Esse assunto, que nunca me
saiu, agora me voltou. Veio com Para sempre – 50 cartas de amor de todos os
tempos (Org. Emerson Tin, Ed. Globo): “Havia perdido, Adélia, o hábito da
felicidade. Provei, ao ler teu bilhete bastante curto, toda a alegria da qual
estive privado há quase um ano. [...] Procuro expressões para te explicar a
minha felicidade [...] e não as posso encontrar”. De Victor Hugo a Adélia
Foucher. Além do desfrute do belo dito e da bela forma de dizê-lo, fica para
meditar: felicidade como hábito; dificuldade de explicar felicidade.
Não é fácil definir
sentimentos, nem os próprios. Ademais de personalíssimos, os sentimentos, nos
diferentes tempos e lugares, manifestaram-se com variados conteúdos e formas,
pois são expressões de cultura, ainda que com fundo de natureza.
A felicidade vem
interessando cientistas. Alguns concluíram que ela depende de características
pessoais; outros, que alcança quem está em posição socialmente vantajosa. Há
quem afirme que ela acompanha quem leva uma vida de sabedoria; também se diz
que, no máximo, conseguimos algumas alegrias temporárias.
Não consigo ver a
felicidade como hábito. Há, todavia, na vida privada, maus hábitos que obstruem
a possibilidade de se ser feliz: vida ignorante, rancores, engolir desaforos,
aturar pessoas desagradáveis, falsear o que se pensa, falsificar a vida. Essas
coisas enfraquecem o sistema imunológico, estiolam a libido. Essas coisas
deprimem, matam.
É possível escanear o
cérebro, ver e medir as reações químicas da felicidade. Sabe-se que ela está
“situada” na região orbitofrontal e depende dos sistemas de dopamina e opioide,
que são produzidos pelo corpo em certos estados emocionais e, então, sustentam
dadas emoções. Sabe-se tudo isso, mas não se sabe o que causa a felicidade, que
é o que interessa.
“Em 2006, estudiosos da
Universidade de Leicester, no Reino Unido, usaram uma série de fatores para
criar um mapa da felicidade no mundo. De dados relativos à saúde e educação
pública ao grau de satisfação das pessoas com os rumos de seu país, a alegria
planetária foi prospectada e investigada” (Época 24mai10).
No topo da lista de 178
países estão Dinamarca, Suíça e Áustria. O Brasil está em 81º lugar. No ano da
publicação da matéria, a Pátria estava de chuteiras. Então, talvez nos
importasse o amanhã, mas não naquele momento, na hora do futebol. E hoje? Que
nos importa?
Um algoritmo vasculhou
nossas redes sociais: “Foram identificadas 393.284 menções sobre temas como
racismo, política e homofobia, sendo 84% delas com abordagem negativas, de
exposição do preconceito e da discriminação. Ódio às mulheres: 49.544 citações,
88% delas com viés intolerante; pessoas com algum tipo de deficiência: 40.801
mensagens, 93,4% com abordagem negativa; racismo: 17.026 menções, 97,6%
negativas.
O levantamento também
mensurou a intolerância pela aparência, homofobia, classes sociais,
idade/geração, religião e xenofobia. Ao contrário do que muita gente acha, o
Brasil é intolerante. As redes sociais fazem nada mais que amplificar esse
ódio, reafirmar os preconceitos que as pessoas já têm” (Sérgio Matsuura, Brasil
cultiva discurso de ódio nas redes sociais, mostra pesquisa, 05ago16, CEERT,
editado).
“A Safernet, uma associação
que desde 2005 trabalha para promoção da segurança digital no Brasil, já
recebeu mais de 2,5 milhões de denúncias relacionas a crimes de ódio na
internet. A partir dessas denúncias, traçou um perfil dos odiados e percebeu
que eles têm cor e gênero bem definidos. Cerca de 59,7 das vítimas desses
discursos de ódio são pessoas negras, e 67% são mulheres. Outras minorias, como
pessoas LGBTQ+ e indígenas, também figuram nas estatísticas” (Discurso de ódio
nas redes sociais repete padrão de preconceitos da sociedade, 06abr21, CNN,
editado).
A senhora da minha
brincadeira de criança percebeu-se com urgência em ser feliz. Suponho que não
conseguiu seu intento. Ao contrário do que pensamos, dizem os estudos sobre o
assunto, o Brasil, que nunca foi exatamente feliz, de lá para cá tornou-se um
país ainda mais deficitário na questão: “Felicidade média do brasileiro cai ao
menor nível em 15 anos em 2020” (Anna Satie e Tamires Vitorio, 14jun21, CNN)”.
Felicidade entre
intolerantes é possível? Voltaire, em 1763, no Tratado sobre a tolerância, já
ensinava que não. Nós, se somos um ambiente público de insultos, de circulação
de hostilidades, como poderíamos individualmente ser felizes? “Números sugerem
que intolerância e desinformação se naturalizaram na internet brasileira. O que
antes seria denunciado, hoje é curtido e compartilhado” (Como o ódio viralizou
no Brasil, Fernanda Pugliero, 20ago18, CartaCapital).
Cultivamos
uma tétrica diversão: fazemos circular ódio e covardemente o dirigimos aos
socialmente mais vulneráveis. Eis a expressão midiática da nossa vida social.
Bem, não acorrerá à maioria de nós, mas, e se a morte lhe chegasse amanhã? Quem
tivesse um mínimo de sensibilidade com as coisas do mundo não poderia morrer em
paz.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito
pela UFSC.
Psicanalista e
Jornalista.
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