Em estudo recente realizado a pedido do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) foi constatado o aumento de 130% nas ações da chamada
judicialização da saúde. Como sempre, números isoladamente não respondem a
muitas questões, é preciso analisar alguns fatos para termos a real dimensão do
que eles representam. De plano, poderíamos apontar a crescente busca ao
Judiciário no maior acesso à justiça e na maior consciência dos cidadãos de
seus direitos, mas será que é só isso?
A Constituição da República de 1988 trouxe avanços
sociais e jurídicos profundos. Além do seu rico e abrangente rol de direitos
previstos no artigo 5º e outros incontáveis avanços protetivos previstos no
texto constitucional, o artigo 196 da nossa Constituição elevou o direito à
saúde a um patamar até então inédito e o considerou um dever do Estado a ser
prestados por todos os seus entes, a União, os Estados e os Municípios. Nossa
constituição também criou o Sistema Único de Saúde (SUS) que, sem margem para
dúvidas, é um dos melhores, mais amplos e importantes programas sociais do
mundo, atingindo a totalidade da população brasileira, sem a exigência de
contraprestações, a um universo de mais de 200 milhões de pessoas.
O constituinte de 1988, prevendo as ameaças que se
avizinhavam no futuro (que já chegou), marcou essas conquistas com a
imutabilidade das cláusulas pétreas, impedindo que fossem reduzidas ou extintas
pelas futuras gerações inclusive por meio de emendas à constituição, Oxalá!
Essa farta previsão de direitos não excluiu a
possibilidade de os particulares prestarem serviços de saúde, aumentando o
leque da prestação desse direito público à chamada saúde suplementar pelos
planos privados de assistência à saúde e pela medicina privada. De acordo com a
Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, os planos devem prestar de forma continuada,
por prazo indeterminado e sem limite financeiro, a
assistência à saúde por meio de profissionais ou serviços de saúde. A lei que
completou seu vigésimo aniversário, já passou por várias modificações e pode
passar por muitas outras mais. Para a fiscalização do correto cumprimento dessa
lei foi criada no mesmo ano a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que
teria a finalidade de regulamentar e fiscalizar o setor e, principalmente,
proteger os consumidores.
Passados 30 anos da constituição e 20 da criação da
ANS qual cenário podemos encontrar no Brasil? Certamente caminhamos muito e
devemos continuar no caminho, mas também é certo que não estamos onde sonhava o
constituinte dos anos 80.
Desde 2014 o número de pessoas com planos de saúde
vem diminuindo consideravelmente, a ponto de transformar esse serviço no
terceiro maior sonho de consumo da população brasileira, perdendo apenas para
educação e casa própria, segundo pesquisa do Ibope, feita a pedido do Instituto
de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) em 2017.
A razão da diminuição é de fácil descoberta, a
perda do desemprego de mais de 14 milhões de brasileiros nos últimos anos que,
além de deixar as famílias em situação de maior vulnerabilidade social com a
ausência dos salários, retira delas as vantagens conferidas por muitos empregos
formais, o acesso à saúde suplementar. Fecham-se as portas do trabalho,
abrem-se as do Judiciário.
Esses 14 milhões de pessoas deixaram de ter acesso
a um serviço pago que, em tese, deveria trazer mais agilidade e conforto do que
os serviços públicos. Esses por sua vez, já acostumados a trabalhar nos limites
de seus capacidades, em um pequeno espaço de tempo ganharam um grande número de
usuários que migraram, de forma não desejada, dos seus planos de saúde privados
para o sistema público. São como 14 milhões de refugiados que foram obrigados a
sair de onde estavam para um lugar em que não querem ficar.
Se por um lado temos mais usuários, por outro temos
menos recursos. A mesma crise que retirou os empregos diminui a arrecadação de
impostos e com eles os investimentos, criando um ciclo vicioso no qual o maior
prejudicado é o cidadão, seja o que acabou de ingressar no SUS, sejam aqueles
que lá já estavam e tinham nele o seu único refúgio.
Esses "novos usuários", em regra, possuem
um grau muito mais elevado de exigência de qualidade e agilidade dos serviços e
maior noção de seus direitos, fazendo com que busquem no Judiciário obter
primazia dos seus atendimentos e tratamentos, causando um grande aumento das
chamadas ações "fura-fila" que visam a passar na frente dos que já
aguardavam os mesmos serviços por meio de liminares judiciais, bem como,
tratamentos e medicamentos que não fazem parte dos chamados protocolos clínicos
padronizados disponíveis a todos os usuários do SUS, portanto, há maior busca
pelo diferente, pelo moderno, pela marca e pelo mais caro.
Em outra ponta, aqueles que permaneceram com seus
planos de saúde não raro se queixam de negativas infundamentadas de tratamentos
e de falta de vagas também nas redes privadas. Problema ainda mais comum e
notório são os aumentos das mensalidades em níveis muitos acima dos índices
gerais de inflação e dos reajustes salariais em patamares que chegam a até 40%
em um único ano. Buscam eles igualmente as portas do Judiciário para obter
tratamentos e revisões contratuais que por vezes se mostram abusivas.
Nos perguntaremos, e a ANS? Ela foi criada para a
regulação de planos individuais, abundantes à época de sua criação, mas
raríssimos hoje em dia, pois somente em relação a esses planos há a limitação
de aumentos estabelecido por este órgão. Tal fato transformou completamente o
mercado da saúde suplementar, fazendo com que as operadoras e seguradoras
buscassem nos planos coletivos um oásis de não regulamentação de preços, sendo
organizados por poucas empresas de administração e comercialização que dominam
o mercado e estabelecem suas próprias políticas tarifárias, relegando a ANS aos
minguantes planos individuais e à fiscalização de funcionamento das empresas
submetidas à sua competência regulatória. Uma vez mais sofre o cidadão, que
busca no Judiciário o controle contra a abusividade que a ANS não regula.
E qual a solução? Sim, a criação de empregos, mas
só? Certamente não. E a resposta está no Sistema Único de Saúde, não na sua
redução ou morte como pretendem alguns. O SUS nasceu para ser universal e
gratuito e somente nele podemos encontrar a solução desejada desde o início
pelo constituinte, a melhoria da saúde de toda a população.
O Sistema Único de Saúde não é aquilo que vemos nos
programas dominicais de televisão, com pessoas morrendo pelos corredores, em
macas e, não raro, nos chãos e portas de hospitais superlotados; é isso também,
mas não só.
O SUS é a única porta para serviços de excelência e
referência mundial em qualidade e alcance como o programa de transplantes, as
campanhas nacionais de vacinação e o tratamento do HIV/AIDS. Existe um SUS de
excelência que é propositalmente esquecido por muitos. Mas sim, há um outro
lado, além das pessoas em macas e da superlotação, estamos na 112ª posição em
lista de 200 países com relação a saneamento básico, um dos piores no
continente americano. Pela primeira vez desde 1990 o índice de mortalidade
infantil aumentou em 4,8% em relação a 2015. Sofremos de uma grave crise de
zika, febre amarela e acabamos de perder o status de país livre do sarampo.
Sim, esse é o SUS das mazelas mostradas aos domingos.
Quando o sistema falha uma parcela da população,
justamente a que possui maior poder aquisitivo e discernimento a respeito dos
seus direitos, busca o Judiciário para a obtenção de seus tratamentos, fazendo
com que os mais ricos abocanhem parte cada vez maior dos recursos, já
insuficientes, destinados à saúde de toda população. Isso condena os mais
pobres a serviços cada vez mais precários, transformando o Sistema Único de
Saúde, que nasceu para ser universal e igualitário, em um sistema com duas
portas, uma VIP e outra de excluídos.
Sem ampliação e melhoria do
SUS, com mais e melhores investimentos públicos especialmente na atenção
básica, a distância entre essas duas portas será cada vez mais abismal.
O discurso vazio de um "Novo Estado",
mais dinâmico liberal e enxuto, retira investimentos de direitos sociais
protegidos pela Constituição, deixando uma maior parcela dos mais pobres ainda
mais miseráveis e doentes e aumenta a busca ao Poder Judiciário para a
concessão de tratamentos e medicamentos de forma indiscriminada, cara e
acessível a apenas uma parte de nossa população, aquela que conhece e pode
percorrer o caminho até o Fórum.
José Luiz Souza de Moraes - Procurador
do Estado de São Paulo atuante na Coordenadoria Judicial de Saúde Pública,
doutorando e mestre em Direito Internacional na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FDUSP), professor de Direito Constitucional e
Internacional na Universidade Paulista (UNIP) e diretor da Associação de
Procuradores do Estado de São Paulo (APESP).