A pesquisa, que teve uma fase qualitativa e uma quantitativa, mapeou a solidão no país antes e durante a pandemia apontou, a partir de entrevistas com milhares de pessoas das 5 regiões do país, que temos um quadro semelhante ao que, em outros países, foi cha-mado de Epidemia da Solidão. A população jovem é o epicentro desta epidemia
Um grupo de estudos coordenado pelo escritor,
consultor e palestrante em desenvolvimento socioambiental, Celso Grecco, acaba
de lançar o Projeto Solidão, cujo objetivo é identificar em que grau a solidão
vem afetando os brasileiros. Para isso foi realizada uma pesquisa de mercado
com milhares de pessoas, em todo o país, a fim de reconhecer o problema; entender
sua relevância e impacto na sociedade e na saúde pública; e desenvolver ações
que despertem para a importância do tema, gerando debates que resultem em
propostas efetivas com o intuito de enfrentar a questão.
O Projeto Solidão está intrinsecamente relacionado
ao livro "A Decisão De Que O Mundo Precisa", escrito por Grecco. O
coordenador do grupo de estudos lembra que ao pesquisar temas a fim de
fundamentar a tese proposta em seu livro, - de que vivemos em mundo pouco
solidário, onde o culto ao individualismo gera transtornos individuais e
sociais - deparou-se com o conceito de "Epidemia da Solidão", uma
espécie de isolamento social pré-pandemia a que as pessoas vinham se
submetendo.
O conceito refere-se a uma série de pesquisas e
estudos feitos em diversos países, apontando a solidão como consequência de um
mundo cada vez mais acelerado e gerador de angústia e infelicidade. Ao se
deparar com a "Epidemia da Solidão", Grecco acreditou se tratar de um
problema que assolava também os brasileiros, mas a falta de estudos a respeito
dificultava a confirmação. Para preencher essa lacuna, surgiu o Projeto
Solidão. "A motivação da pesquisa foi aprofundar uma pista que começa a
nos dar muitas explicações interessantes sobre o comportamento e sentimentos
dos brasileiros", explica.
Os setes espectros da solidão
A primeira fase do projeto, qualitativa, consistiu
em uma série de entrevistas com especialistas como psicólogos, psiquiatras e
neurologistas, entre outros profissionais da saúde mental, além de pesquisa de
dados secundários. Posteriormente foram feitas 60 entrevistas individuais com
pessoas com idade entre 16 e 75 anos na cidade de São Paulo, moradoras de
diferentes regiões e de distintas classes sociais.
Nesta etapa, o estudo identificou sete principais
razões (as mais citadas) que trazem um estado de solidão, diferente de
depressão, chamadas no projeto de espectros. São eles: ansiedade de performar;
irrelevância; inadequação; abandono; redes sociais; tempo e espaço; e insegurança.
A ansiedade de performar está fortemente
relacionada à autossuficiência como valor e à independência como sinônimo
de liberdade. Nesse sentido, qualquer tipo de ajuda é considerada fraqueza.
Durante a pesquisa, o grupo de estudos colheu depoimentos de um número
expressivo de pessoas que afirmaram cobrar-se excessivamente para realizar
objetivos e projetos pessoais.
A irrelevância é associada a um sentimento de
invisibilidade e descartabilidade. "Pelos depoimentos colhidos, percebe-se
que as pessoas se sentem frustradas por não se sentirem importantes, e diante
da competitividade do mundo atual, não conseguirem deixar sua marca,
sentindo-se frequentemente menos preparadas do que seus pares", constata o
grupo de estudos responsável pelo Projeto Solidão.
A inadequação tem suas raízes no sentimento de não
pertencimento a nenhum grupo determinado. Conforme as informações coletadas nas
entrevistas, trata-se de um espectro fortemente ligado às minorias. "Se na
esfera coletiva, fala-se tanto de pluralidade e diversidade, em âmbito pessoal
constata-se que as pessoas ainda encontram dificuldades na afirmação de suas
singularidades", afirma o grupo de estudos.
Sobre o abandono, entende-se que a demanda está
relacionada, primeiramente, à ausência da presença calorosa. Isso é sentido
mais fortemente pelos idosos, que se veem como um peso para a família. Em um
segundo momento, depreende-se uma relação entre pais e filhos atravessada pela
tecnologia. "É o que denominamos 'lar, tecno lar', em que cada membro da
família tem seus olhos voltados apenas para a tela de seus equipamentos
eletrônicos, o que precariza o cuidado parental”, explica o grupo de estudos.
As redes sociais por sua vez apresentam um caráter
ambíguo, sendo compreendidas pelos entrevistados como fonte de sofrimento e de
alívio. "Trata-se tanto de um lugar para se comparar e sofrer como de um
lugar de procura e encontro", afirma o grupo de estudos.
Já o espectro tempo e espaço aparece vinculado à
imposição do imediatismo, que imprime essa nova relação com o tempo. Conforme o
estudo, os entrevistados sentem uma exigência constante por se atualizarem, a
fim de acompanhar o ritmo imposto pelo mundo digital. Desse modo, encontram-se
sempre em estado de alerta, pois necessitam estar prontos para dar respostas rápidas
aos desafios impostos pela atualidade.
Por fim, a insegurança, que é impulsionada pelas
ameaças de se viver em grandes centros urbanos. Os entrevistados constantemente
relataram medo da violência (assaltos, agressões no trânsito etc.) e da
vulnerabilidade institucional, ou seja, estarem desamparados no que diz
respeito à saúde, à educação, ao emprego etc.
Segunda etapa - Pesquisa quantitativa
Com o tema mapeado e as principais razões da
solidão identificadas, o grupo de estudos partiu para a pesquisa quantitativa,
com o intuito de entender como a população brasileira era afetada por cada
espectro. Para isso, entrevistaram, entre 6 de fevereiro e 12 de fevereiro
deste ano, 2010 pessoas – com 18 anos ou mais - em todas as regiões do país.
A pesquisa levou em conta as seguintes variáveis:
gênero, idade, estado civil, filhos, grau de escolaridade, região do país e
classe social.
Os dados mais relevantes levantados pela pesquisa
quantitativa apontaram a população jovem, na faixa etária dos 18 aos 34 anos, no
epicentro dos espectros, notadamente no referente à ansiedade de performar.
Quando os entrevistados foram questionados se costumavam se cobrar demais para
realizar objetivos e projetos pessoais, a maior parte (43,5%) respondeu que
sempre fazia isso e outros 35% responderam que às vezes. Somente 8,3% das
pessoas que participaram do levantamento afirmaram nunca ter se pressionado por
resultados. "A ansiedade de performar é o item que foi reconhecido como
causador de maior angústia e, assim, mostra-se como a raiz dos demais
espectros", diz o grupo de estudos.
Outro ponto importante da pesquisa quantitativa
está relacionado ao espectro inadequação, destaque entre os mais jovens e menos
escolarizados. Ao serem perguntados se sentiam que ninguém os entendia, 50,8%
dos jovens disseram que “às vezes”, assim como 50,9% daqueles que estudaram até
o 4º ano do ensino fundamental. "Com essas respostas, inferimos que a
educação é importante instrumento de integração social, condição para
participar das oportunidades da vida e a falta dela está ligada ao sentimento
de invisibilidade social", afirma o grupo de estudos.
O espectro abandono também foi sentido com mais
ênfase entre os entrevistados mais jovens. A porcentagem de respostas
afirmativas em relação à pergunta "Você sente falta de companhia?",
tendeu a ser maior entre os entrevistados de 18 anos a 24 anos e entre 25 anos
e de 34 anos. Na primeira faixa, mais de 60% disseram que às vezes se
sentiam solitários. Na segunda faixa, mais de 50% declararam isso.
No quesito redes sociais, questionados se sentiam
que suas vidas seguiam no modo automático, sem desafios ou objetivos, cerca de
50% dos entrevistados da classe C, D e E responderam "às vezes" ou
"sempre. Entre os pesquisados da classe A, apenas 29% reagiram da mesma
forma. Conforme o grupo de estudos, estes resultados parecem refletir um certo
desalento que vem se formando nas classes com menos poder aquisitivo em
decorrência da série de dificuldades enfrentadas no país.
Por fim, o espectro insegurança, cuja preocupação
também encontrou eco mais forte entre os representantes das classes sociais
menos abastadas. À pergunta "você se sente frequentemente inseguro na
região onde vive?", aproximadamente 55% dos entrevistados das classes D e
E responderam que "às vezes" e "sempre". Entre as pessoas
da classe A, esse número caiu para cerca de 43%. "Fica evidente que a
preocupação relativa à segurança física é maior entre as classes de menor poder
aquisitivo", diz o grupo de estudos.
Pareamento da pesquisa durante a pandemia –
Ansiedade aflorada
Mas no meio do caminho havia uma pandemia. Entre
finalizar a segunda fase da pesquisa e lançar o estudo, o primeiro caso de uma
pessoa infectada com o Covid-19 surgiu no Brasil. Após este, vários outros.
Hoje são milhões que se contaminaram e mais de uma centena de milhares que
morreram por conta da doença. Uma das principais formas encontradas para
controlar a disseminação do vírus foi o isolamento e o confinamento social. O
Brasil seguiu em parte essa conduta. Uma boa parcela da população do país
abruptamente se viu obrigada a não sair de casa, temendo ser contaminada pelo
novo coronavírus.
Esta nova realidade de muitos brasileiros instigou
o grupo de estudos responsável pelo Projeto Solidão a ir a campo novamente – a
partir da segunda quinzena de março - entrevistar as pessoas questionadas
na fase da pesquisa quantitativa, para saber se a pandemia e o consequente
isolamento haviam transformado drasticamente o modo como elas enxergavam a
solidão. Grecco enfatiza que nessa etapa executou-se um pareamento - técnica
que consiste em repetir os questionários para uma parcela dos entrevistados
anteriormente - com a pesquisa anterior.
Ao todo, o grupo de estudo coletou 600 respostas e
registrou pequenas diferenças entre o estado de espírito pré e pós-pandemia de
alguns dos entrevistados. Na etapa anterior, haviam sido investigadas 17
variáveis que poderiam influenciar o fenômeno da solidão entre os brasileiros.
Nela, 34,1% das pessoas afirmaram “às vezes” sentir essas variáveis, 33%
“nunca” haviam experimentado, 21,1% “raramente” e 11,8% responderam “sempre”
vivenciá-las. No levantamento realizado durante a pandemia, o número de
entrevistados que respondeu “nunca” ter sentido as variáveis caiu para 28,5%, e
aqueles que disseram “raramente” experimentar as variáveis que caracterizam a
solidão aumentaram para 24%. O grupo constatou a migração de uma parcela à
outra.
Essa fase do projeto ainda questionou os
entrevistados sobre sentimentos relacionados ao estado de espírito durante o
período de isolamento social. O objetivo foi saber qual o sentimento mais
presente durante a pandemia. A ansiedade foi o item mais citado, por 54% da
amostra, seguido por insegurança, medo e impotência, lembrados,
respectivamente, por 47,3%, 36% e 27% dos entrevistados. “A solidão, que era o
escopo principal desse projeto, aparece espontaneamente em 19,1% da amostra
pesquisada”, afirma o grupo de estudos. Preocupação, tristeza e tédio também
foram sentimentos que afloraram em decorrência do isolamento, segundo os respondentes.
Especificamente sobre a solidão um dado
interessante. De acordo com o estudo, 42,3% dos entrevistados afirmaram
sentir-se sozinhos mesmo antes da pandemia de Covid-19 e, desse montante, 21%
enfatizaram que o sentimento se agravou em razão do isolamento. Dos demais
respondentes, (57,7%) que disseram não ter o costume de sentirem-se solitários,
19,6% declararam que este sentimento surgiu com as medidas que restringiram o
convívio social. “Tal resultado demonstra que, apesar das variáveis previstas
no espectro das questões investigadas nas diferentes fases do projeto, o
sentimento de solidão está presente em 40,6% da amostra”, afirma o grupo de
estudos.
Brasil pós-pandemia
Muito antes da pandemia da Covid-19, a epidemia da
solidão já era uma realidade. Em uma sociedade que louva a independência, o
egoísmo e a competitividade e despreza a empatia e a solidariedade, a angústia,
a tristeza e a infelicidade viram normas.
De acordo com Grecco, ao mesmo tempo que o novo
coronavírus intensificou nossos medos e angústias, despertou a preocupação
pelos outros e um sentimento de comunidade há tempos adormecida. "A
solidariedade passou a ser entendida como a tábua de salvação das nossas
sociedades", diz.
Segundo o escritor, consultor e palestrante em
desenvolvimento socioambiental, a presença da morte fez com que o brasileiro
também descobrisse a empatia, que passou a ser exercitada em relação aos
carteiros, entregadores dos aplicativos e todos aqueles que, em razão de suas
atividades, propiciaram que grande parte da população permanecesse isolada.
"Muitas pessoas que não tinham o hábito de praticar ações sociais
começaram a confeccionar máscaras de proteção e distribuir alimentos, por
exemplo. O que se arrecadou com doações nos primeiros dois meses de pandemia
ficou muito acima do que se costuma angariar em um ano inteiro no país",
afirma.
Grecco indaga, porém, se a onda solidária se
tornará perene ou se se desmanchará assim que a curva de casos de Covid-19
achatar no Brasil. O escritor diz querer um "outro normal".
"Não era normal o que vivíamos enquanto sociedade antes da pandemia e
agora temos uma chance de mudarmos. É a vida dizendo para que nossos valores
sejam ressignificados. A curva dessa consciência e solidariedade é a única que
não podemos deixar achatar", declara.
Grecco pondera que, por outro lado, a desconfiança
pode se tornar a nova tônica social. "Quem conseguirá voltar à rotina
antiga, desde tomar aviões até dar um simples aperto de mão? Por conta da
postura das pessoas e dos governantes nessa pandemia, qual será o grau de
confiança no outro e nas instituições?", indaga. Há uma grande chance de
as pessoas terem seu instinto de sobrevivência aflorado, tornando-se ainda mais
fechadas e distantes.
A outra opção, segundo o palestrante em
desenvolvimento socioambiental, é entender que foi justamente esse modelo de
vida, centrado na autossuficiência e no individualismo, o que provavelmente,
nos levará à próxima pandemia. Talvez, mais letal.
Celso
Grecco - Atuando há vinte anos como consultor e palestrante
em desenvolvimento socioambiental, Celso Grecco é Fellow Ashoka, Sênior Fellow
Synergos e coautor do livro "Financing the Future: Innovative Funding
Mechanisms at Work" (Editora Terra Media, Berlim, 2007). Criador da
primeira Bolsa de Valores Sociais (BVS) do mundo em 2003 para a então Bovespa
(hoje B3) no Brasil, adotada como estudo de caso e recomendada para as demais
Bolsas de Valores do mundo pela ONU. Em 2008, recebeu o prêmio Vision Awards em
Berlim entregue pelo ganhador do Prêmio Nobel da Paz, o Professor Muhammad
Yunus, e, em dezembro do mesmo ano, foi homenageado na ONU em Nova York. Citado
no livro "Empreendedores sociais: o exemplo incomum das pessoas que estão
transformando o mundo" (Editora Campus, 2009) teve também o perfil
retratado nas revistas Newsweek (Estados Unidos) e Der Spiegel (Alemanha). Atuou
como consultor de branding para o Charity Bank, primeiro banco sem fins
lucrativos do mundo, com sede na Inglaterra. Em 2015, foi um dos finalistas, na
China, do Prêmio Olga Alexeeva, outorgado pela Alliance Magazine da Inglaterra,
que reconhece pessoas com contribuições relevantes ao setor social de países em
desenvolvimento.
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