Começo pedindo licença ao economista Carlos Octávio
Ocké-Reis, que é doutor em saúde coletiva, para usar o nome de seu livro como
título deste artigo. O livro foi publicado pela Editora Fiocruz, em 2012, e é
uma obra para ser lida, estudada, debatida, sobretudo pelos políticos no
governo e nos legislativos, que são os encarregados de regular e dirigir a
política de saúde no país. Neste momento de grave crise, mais que nunca é
necessário estudar e falar de políticas de saúde.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define que
saúde é o estado de completo bem estar físico, mental e social, e não a simples
ausência de doença ou enfermidade. Nossa Constituição Federal diz, no artigo
196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação. Então, aí temos as diretrizes maiores para a
política de saúde no país.
Após a Constituição de 1988, o Sistema Único de
Saúde (SUS) começou a ser idealizado e foi regulado e implantado no governo de
Fernando Collor, com a Lei no 8080 de 19 de setembro de 1990. Essa lei, que
está prestes a completar 30 anos, afirma em seu artigo 2o que “a saúde é um
direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis a seu pleno exercício”, e segue, no parágrafo 2o, dizendo que “o
dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”.
Os modelos de assistência à saúde e sua sustentação
financeira historicamente se deram por três caminhos: o assistencialismo, o
previdencialismo e o universalismo. O primeiro modelo, basicamente
assistencialista, predominou até os anos 1850 e atendia basicamente a população
sem recursos, em geral por meio de instituições como as Santas Casas de
Misericórdia e entidades públicas ou privadas de caráter filantrópico. O
assistencialismo é uma espécie de solidariedade humana, de inspiração religiosa,
fundada na compaixão ou como política pública de combate à pobreza e ao
sofrimento.
O segundo modelo, de natureza previdenciária, é um
esquema de seguro-saúde em que pessoas participam de um grupo e fazem
contribuição rotineira previamente fixada. Exemplo histórico conhecido é a
caixa de seguro-saúde dos trabalhadores do artesanato especializado, na segunda
metade do século 19. Os planos de saúde privados seguem esse modelo, que foi
expandido e testado pela adoção da “saúde em grupo” nas empresas alemãs, com a
participação de empregados e empregadores no custeio, até a implantação do
previdencialismo a todos os trabalhadores formais na Alemanha pelo governo de
Otto von Bismarck, em 1883 , com a participação adicional do Estado.
O previdencialismo é bem conhecido de nós. Os
participantes do grupo contribuem com recursos destinados a cobrir uma
finalidade só – por exemplo, assistência médica –, ou para atender a várias
finalidades – como aposentadoria, pensão por morte, auxílio por acidente,
pensão por invalidez etc. A função da empresa gestora do sistema (a operadora)
é recolher as contribuições dos participantes e cobrir os gastos dos que são
acometidos por eventos cobertos pelo contrato. Para isso, a operadora do plano
monta uma estrutura administrativa, a ser paga com um porcentual da
arrecadação.
O terceiro modelo é o universalismo, formato como o
SUS foi concebido. O universalismo tem origem na Inglaterra, em 1942, com o
Plano Beveridge, feito pelo economista William Beveridge (1879-1963), a pedido
do governo conservador britânico. Esse plano propunha que todas as pessoas em
idade de trabalhar deveriam pagar uma contribuição ao Estado para formar um
fundo destinado a subsidiar os doentes, os desempregados, os reformados
(aposentados) e as viúvas.
A ideia central de Beveridge era que esse sistema
permitiria um nível de vida mínimo, abaixo do qual ninguém deveria viver.
Adicionalmente, ele propôs que o governo inglês deveria mobilizar formas de
combater os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a
ignorância, a miséria e a ociosidade. Alguém pode dizer que existe um quarto
modelo: o individualismo, pelo qual cada um cuida de si e paga seus gastos de
saúde com seu próprio dinheiro. Esse modelo não é considerado uma política
pública, porquanto somente ínfima parcela da população tem condições de bancar
todos os eventos de saúde e doença.
O SUS nasceu com a pretensão de ser um sistema
nacional de saúde, de caráter universal (atender toda a população), que
completa 30 anos apresentando virtudes de concepção e vícios de execução. O
principal vício (ou falha, como queiram) está expresso em um dado: do total de
gastos da população brasileira com saúde, 58% é gasto privado e apenas 42% é
gasto coberto pelo SUS. Em saúde, o Brasil gasta 9% do Produto Interno Bruto
(PIB), o que dá R$ 657 bilhões sobre o PIB de R$ 7,3 trilhões em 2019.
Vale lembrar que os gastos com saúde são abatidos
da renda tributável no Imposto de Renda, fazendo que o governo contribua com a
fração do imposto que deixa de arrecadar em face do abatimento. Se a população
arca com 58% do gasto nacional com saúde, por meio de planos privados de saúde
ou por conta própria sem plano, o SUS não conseguiu cumprir o objetivo de ser
um sistema universal e único. Esta pandemia reforçará o apoio ao fortalecimento
do sistema único universal, mas o SUS requer melhorias substanciais em três
pontos: eficiência gerencial, fontes de sustentação e combate às fraudes. Há
mais a discutir sobre o tema, mas isso é assunto para outro artigo.
José
Pio Martins - economista, e reitor da Universidade Positivo.
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