A Covid-19 atinge a todos e promove uma turbulência
que reverbera nas esferas da saúde, social, econômica e jurídica. O termo
pandemia se tornou uma palavra de uso cotidiano e a incerteza nos acompanha.
Apesar das controvérsias nos mais variados campos, há razoável consenso de que
o cenário é complexo e soluções improvisadas não dão conta dos problemas que
estão postos.
Em relação aos planos de saúde, as repercussões
abarcam a dificuldade de pagamento, extinção do contrato por atraso nas
mensalidades, reajustes e tratamentos. Nesse sentido, o projeto de lei n.
1117/2020, em trâmite na Câmara dos Deputados, propõe a alteração da Lei dos
Planos de Saúde para, “enquanto durarem os efeitos do Estado de Calamidade
Pública”, vedar o reajuste das mensalidades, bem como proibir o cancelamento de
contratos por atrasos de até 90 dias.
O projeto de lei, em resumo, transfere
integralmente às operadoras o impacto da Covid-19, sem avaliação de custos ou
riscos. Em contraste com a importância do tema, o projeto não apresentou nenhum
estudo técnico ou cálculo de impacto. Como se fosse possível resolver um
problema dessa magnitude em um passe de mágica, a iniciativa legislativa não
levou em conta o caixa das operadoras, nem o impacto da natural redução dos
clientes na crise. Ignorou também a diversidade de porte das operadoras.
Outra questão relevante está na má redação do art.
15-B, que aqui transcrevo: “As empresas Operadoras de Planos de Assistência à
Saúde ficam proibidas, pelo prazo de noventa dias, de procederem à suspensão ou
rescisão unilateral dos contratos dos Planos Privados de Assistência à Saúde,
em virtude do não-pagamento das mensalidades pelos consumidores, enquanto
durarem os efeitos do Estado de Calamidade Pública (...)”.
A truncada redação permite duas interpretações. Na
primeira compreensão, a operadora estaria obrigada a manter as coberturas,
mesmo sem receber por 90 dias. Esse prazo poderia ser invocado mesmo com o fim
do distanciamento social, já que o critério da lei é “enquanto durarem os
efeitos” do coronavírus, sem especificar quais. Deixa-se a operadora sem
parâmetros, e sem receber.
Uma segunda leitura, ainda mais preocupante, é no
sentido de que as pessoas e empresas poderiam simplesmente não pagar o plano de
saúde “enquanto durarem os efeitos do Estado de Calamidade Pública”.
Exemplifico: uma empresa que demore um ano para recuperar seu volume de vendas
poderia ficar todo esse período sem pagar, já que os efeitos ainda estão
presentes. Ambos os cenários são inviáveis.
Em qualquer das interpretações, o projeto autoriza
a suspensão total do pagamento da mensalidade do plano, por ao menos 90 dias,
sem prever nenhuma contraprestação ou garantia às operadoras; nem mesmo
retirou-se do benefício os planos odontológicos, os quais sequer guardam
relação com a Covid-19.
A finalidade do projeto de lei de “garantir a
manutenção dos contratos de Assistência Privada à Saúde” é um desejo comum a
todos. As soluções, contudo, não podem se resumir a criar uma enorme bola de
neve de dívidas, que terminará por extinguir os contratos de plano de saúde,
seja porque as pessoas não conseguirão pagar seus débitos, seja porque as
operadoras deixarão de existir.
Gabriel Schulman - doutor
em Direito pela UERJ, advogado Sócio de Trajano Neto e Paciornik, professor da
Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.
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