Estamos habituados a falar do Estado, do capitalismo etc,
ou seja, dos modos de organização social como se falássemos de entes bons ou
maus, com vontade e capacidade própria. Ora, essas coisas são invenções da
humanidade. O humano produz a sociedade em que vive.
Claro, produz e é produzido. Um modo de viver socialmente,
depois de feito condição de vida, torna-se agente; ao nascermos em dado período
histórico, somos determinados por ele. A isso nomeamos Dialética da História:
nós produzimos a História, mas a História produzida nos produz.
Contradigo-me? Pretendo que não. Sustento que não existe
a História sem o humano e não existe o humano sem a História. História e
humanidade produzem-se reciprocamente. Refregas por interesses, ideologias,
vantagens mundanas, enfim, por poder, são o motor dos acontecimentos.
Essas lutas engendram novas circunstâncias que enquadram
novas condições de viver e de pensar dos humanos que nascem e se formam nesses
caldos conflitivos; seguintemente reescrevem a História e por ela são
reescritos. Ninguém, pois, controla o devir, o que faz da vida uma aventura.
Em Contrato de Convivência Social procurei mostrar que a
Idade Moderna retirou da divindade católica a fabricação do mundo e devolveu-a
aos humanos. A humanidade declarou-se responsável por si, então, ela teria uma
melhor ou pior vida se organizasse uma melhor ou pior maneira de viver.
Nessa época pensadores designados contratualistas
defendiam que os humanos poderiam ser tomados de sensatez suficiente para
combinar um jeito de conviver digno para cada um, de modo que todos vivessem em
paz. Os contratualistas principais são: Hobbes, Locke e Rousseau.
Começando com Thomas Hobbes, a quem denominei “o
autoritário”, seguindo com John Locke, a quem nomeei “o liberal”, resumi, em
dois artigos anteriores a este, o que cada um deles propõe sobre as condições
mínimas necessárias – e exigíveis – para se construir uma vida social decente.
Agora, editando o escrito e concatenando as ideias de
Jean-Jaques Rousseau (Editorial Presença, 1977), havido por inspirador de Karl
Marx, destaco: São advertências e cláusulas d’O Contrato Social “Em condições
sociais razoáveis, cuidadas por normas razoáveis, vive-se em paz” (p. 16).
São indefensáveis contratos com vantagens
desproporcionadas: “Estabeleço contigo um acordo, inteiramente em meu benefício
e totalmente em teu prejuízo, que manterei enquanto quiser e que tu terás de
aceitar enquanto eu assim o entender” (p. 19). Quem se conformaria com tal?
Porém, se cada um desistir do excesso, aceitando
condições igualitárias, ou seja, se em um pacto predominam justiça e razão,
edifica-se “uma igualdade moral e legítima, e os homens que na força e no gênio
são desiguais, tornam-se iguais pela convenção e pelo direito” (p. 30).
“Se o Estado é uma entidade moral cuja vida consiste na
união dos seus membros, e se o mais importante dos seus cuidados é o da sua
própria conservação, tem de existir uma força universal e compulsiva que mova e
disponha cada parte de maneira mais conveniente para o todo” (p. 38).
“Cada um tem de se submeter às mesmas condições que impõe
aos outros. Todos ficam obrigados às mesmas condições e todos devem gozar dos
mesmos direitos” (p. 41). “Quem pretende o fim, aceita os meios e estes meios
não podem separar-se dos riscos e até de algumas perdas” (p. 43).
“Os indivíduos costumam não apreciar outro plano de
governo que não seja o que mais se aproxime do seu interesse particular.
[Contudo, não haverá boa vida em comum sem que os cidadãos] obedeçam livres e
suportem docilmente o jugo da felicidade pública” (p. 51) por sobre a
particular.
Não há salvação privada fora do exercício pleno – vida
pública – da cidadania. “Qual a finalidade da associação política? É a
conservação e a prosperidade dos seus membros” (p. 99). Mas se “alguém diz: Que
me importa? ao referir-se às questões do Estado, o Estado está perdido” (p.
111).
A história de muitos povos produziu desvios. Muitas
anomalias, com custos danosos a todos, vêm-se arrastando pelos tempos. “Os que
só conhecem Estados mal constituídos desde a sua origem enganam-se pensando ser
possível manter semelhante equilíbrio” (p. 124). É o nosso caso.
Nos registros do mundo, estamos na conta de país
extremamente desigual. Dos que têm condições, somos o pior. A vida social
brasileira nunca foi, não é e não tem planos de se tornar justa, racional,
igualitária. Pagamos um preço desgraçado convertido em violência, insegurança,
medo.
Rousseau não raro é simplificado na afirmação de que “o
homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”. Ora, nós produzimos as
circunstâncias que nos produzem. Se as recebemos ruins, havemos de dar jeito
nelas, ou será cada um por si: natureza, estado de guerra de todos contra
todos.
Os que abiscoitam vantagens nesse
sistema perverso e, pior, dizem “Que me importa?” (“E daí?”), “enganam-se
pensando ser possível manter semelhante equilíbrio”. De vez em quando nos
conflagramos; um dia esse negócio explode. Nisso, a sabedoria Tiririca: “Pior
do que está, não fica”.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista
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