No
último mês, em uma sessão que durou menos de cinco minutos e contou com a
presença de poucos parlamentares, a Comissão de Direitos Humanos do Senado
aprovou o Projeto de Lei 2.524/2024, que proíbe o aborto após a 22ª semana de
gestação, mesmo nos casos atualmente permitidos por lei como, por exemplo,
estupro, risco de vida da gestante ou anencefalia. A cena sintetiza, em muitos
sentidos, o que esse projeto representa: um retrocesso silencioso, que avança
sem debate público, sem escuta e sem empatia pelas meninas e mulheres que mais precisam
de proteção.
O
PL 2.524 não é apenas uma mudança legal, é uma negação de direitos básicos
garantidos pela Constituição, pelos tratados internacionais e por compromissos
éticos e sociais. Ao impor a continuidade forçada de uma gravidez resultante de
estupro, o Estado abandona o papel de protetor e passa a ser cúmplice da
violência. Na prática, o projeto força meninas estupradas a se tornarem mães,
ignorando completamente o trauma, os impactos físicos e psicológicos e a
realidade de um sistema que já falha em acolhê-las.
Esses
impactos são particularmente graves no Brasil. Segundo dados do SINASC/DATASUS,
a cada hora 44 adolescentes dão à luz no país, e cinco delas
têm menos de 15 anos. Toda relação sexual com crianças e
adolescentes com menos 14 anos é considerada estupro de vulnerável e, ainda
assim, apenas uma fração mínima dessas meninas consegue acessar o aborto legal
garantido por lei. A maioria vive em contextos de vulnerabilidade, medo e
desinformação, o que reforça a distância entre o direito formal e o acesso real
aos serviços de saúde e proteção.
Além
disso, o Brasil ainda enfrenta índices preocupantes de mortalidade materna.
Segundo dados preliminares de 2024, a taxa foi de 50,57 óbitos para cada 100
mil nascidos vivos — número que permanece acima da meta estabelecida pelo país
para 2030, de 30 mortes por 100 mil nascimentos. Mesmo com avanços recentes, o
dado revela que o país segue falhando em garantir condições seguras e
equitativas de gestação e parto, especialmente entre as mulheres mais jovens e
vulneráveis.
O
discurso da “proteção ao nascituro” esconde uma contradição profunda. O mesmo
país que agora discute a “inviolabilidade do direito ao nascimento” tem um
sistema de saúde que ainda não assegura pré-natal adequado, uma rede de
proteção que falha em identificar meninas vítimas de violência sexual e uma
estrutura que não garante que essas crianças tenham direito a viver com
dignidade. Proteger a vida não pode significar condenar meninas a perder a
própria infância.
A
aprovação desse projeto pela Câmara ocorreu justamente em outubro, mês em que o
mundo celebrou, no dia 11, o Dia
Internacional das Meninas, uma data criada pela ONU para
reforçar a urgência de garantir que meninas cresçam livres de violências, com
acesso à educação, à saúde e a oportunidades iguais. O contraste entre o
simbolismo da data e a aprovação de um projeto como o PL 2.524 revela o abismo
entre o discurso e a prática na proteção dos direitos das meninas no Brasil.
A
Plan International Brasil, que atua há quase 30 anos pela igualdade de gênero e
pelos direitos das crianças e adolescentes, vê com enorme preocupação a
tramitação dessa proposta. A pressa em aprovar um texto tão sensível, sem
diálogo com a sociedade civil e sem escuta das vozes femininas no Parlamento,
revela o quanto o país ainda resiste a enxergar meninas e mulheres como
sujeitos de direitos.
O Senado ainda tem a chance de corrigir esse curso. O PL 2.524 seguirá para as Comissões de Assuntos Sociais e de Constituição e Justiça. Que essas próximas etapas não repitam o silêncio da última semana. Que sejam espaços de debate, de ciência, de escuta às vítimas e de compromisso com a dignidade humana.
Mais do que discutir semanas de gestação, o Brasil precisa discutir o tempo que ainda falta para garantir que nenhuma menina seja violentada, silenciada ou forçada a ser mãe. É desse debate que o país não pode fugir!
Cynthia Betti - CEO da Plan International Brasil
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