A inteligência artificial (IA) chegou à saúde com a promessa de agilizar diagnósticos, democratizar o acesso e reduzir custos. Mas, na prática, observa-se uma tendência preocupante: empresas que pretendem abarcar toda a cadeia de cuidados em uma única operação, do primeiro clique à entrega do produto final.
A jornada começa, muitas vezes, com uma anamnese virtual conduzida por robôs ou
sistemas de IA. Em seguida, um profissional de saúde, quase sempre em
modalidade assíncrona, analisa o prontuário digital, aprova (ou apenas
confirma) a conduta sugerida pelo algoritmo e, a partir daí, nasce uma
prescrição.
Essa prescrição geralmente envolve fórmulas personalizadas de medicamentos,
cosméticos, suplementos ou fitoterápicos, que são manipuladas em farmácias magistrais
ou fornecidas em drogarias com produtos prontos, muitas vezes dentro de um
mesmo ecossistema digital.
Há plataformas que funcionam como verdadeiros marketplaces de saúde, reunindo
consulta, prescrição e venda num único fluxo operacional. Parece eficiente.
Mas, sob a ótica jurídica, a fronteira entre serviço de saúde e atividade
comercial desaparece.
O paciente deixa de ser paciente e passa a ser um consumidor capturado dentro
de um funil de vendas em que o “tratamento” já vem acoplado ao produto.
Essa integração vertical — consulta, prescrição, manipulação e entrega — traz
riscos regulatórios importantes e recoloca antigas discussões sobre conflito de
interesses na medicina.
Do ponto de vista sanitário, a Lei nº 5.991/1973, alterada pela Lei 11951/09
proíbe expressamente a intermediação comercial de formulas de manipulação com
drogarias, por exemplo. Quando a consulta, prescrição e dispensação ocorrem
dentro da mesma estrutura empresarial (ou em arranjos de parceria digital), há
indício de captação indevida de receitas ou de venda casada, o que também
potencialmente afrontaria a ética profissional dos profissionais de saude, a
exemplo do Código de Ética Médica.
Há ainda o problema da responsabilidade: se o algoritmo participa da decisão
terapêutica, quem responde por um erro? O profissional que apenas “valida” a
conduta sugerida pela máquina? A empresa proprietária da plataforma? Ou a
farmácia que manipula ou entrega o produto?
No Brasil, a Anvisa ainda não regulamentou especificamente o uso da inteligência
artificial em produtos e serviços de saúde. Entretanto, os softwares médicos já
são controlados pela Agência, por meio da Resolução RDC 657/2022, que trata do
Software como Dispositivo Médico (SaMD). Essa norma define que qualquer
software com finalidade diagnóstica, terapêutica ou de monitoramento deve ser
regularizado junto à Anvisa, com base em critérios de segurança,
rastreabilidade e avaliação clínica. Assim, um sistema de IA que analisa
sintomas, sugere condutas ou prescreve medicamentos pode ser enquadrado como
dispositivo médico, exigindo registro ou notificação.
Contudo, a RDC 657 foi elaborada para softwares estáticos, aqueles que mantêm o
mesmo desempenho após a aprovação, e não cobre integralmente as novas
tecnologias de aprendizado contínuo, capazes de se reconfigurar a partir de
dados do mundo real. Esse é o chamado algoritmo adaptável, que pode alterar seu
comportamento sem intervenção direta do fabricante. E, portanto, mudar seu
perfil de risco após a aprovação inicial.
Nem todo software que parece “médico” possui essa finalidade regulada. Muitos
sistemas são vendidos como softwares de bem-estar (wellness apps), aplicados à
promoção da saúde, bem-estar ou monitoramento leve, e ficam fora do regime de
dispositivo médico da Anvisa, justamente porque não realizam diagnósticos ou
tratamentos formais.
Essa diferenciação “cria zonas cinzentas de regulação”, permitindo que
plataformas apresentadas como “bem-estar conectado” funcionem, na prática, como
porta de entrada para prescrições e vendas.
A Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde
(ABIMED) informou que a Anvisa já trabalha na revisão da RDC 657/2022. A minuta
propõe incluir dois novos conceitos: o de software adaptável e o de software
específico, voltado a soluções ajustadas a pacientes, grupos ou populações
específicas, incluindo sistemas de IA com aprendizado contínuo. Embora ainda
não haja consulta pública formal, o movimento sinaliza que a Agência pretende
avançar na regulação dessas tecnologias, hoje em zona cinzenta.
Há ainda o tema sensível dos dados pessoais de saúde, tutelados pela Lei Geral
de Proteção de Dados (LGPD). Em plataformas que acumulam papéis de triagem,
prescrição, manipulação e entrega, os dados do paciente circulam entre diferentes
CNPJs, muitas vezes sem o devido controle de consentimento e finalidade.
Pior: as informações clínicas podem alimentar o próprio algoritmo que define
novos tratamentos ou ofertas comerciais, transformando o histórico médico em
ativo de marketing.
A digitalização da saúde é inevitável e desejável. A IA pode auxiliar
diagnósticos, ampliar o acesso e otimizar recursos. Mas inovação sem governança
é risco disfarçado de eficiência. O Direito precisa acompanhar não apenas o
avanço tecnológico, mas a fusão entre o cuidado e o comércio. Toda vez que uma
IA recomenda um tratamento e, na sequência, oferece o produto correspondente, a
ética do cuidado se transforma em estratégia de conversão. A inteligência
artificial pode e deve ser uma aliada poderosa da medicina, mas deve servir à
ciência antes da conveniência de mercado.
Claudia
de Lucca Mano - advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de
vigilância sanitária e assuntos regulatórios.
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