O Censo 2022 do IBGE revelou um dado que, a despeito de parecer anacrônico,
ainda mancha o retrato da sociedade brasileira: mais de 34 mil crianças e
adolescentes de até 14 anos vivem em uniões conjugais no país.
A informação é oficial, resultado da autodeclaração dos próprios domicílios. E
o número impressiona: são meninos e, sobretudo, meninas que já vivem
experiências típicas da vida adulta — sem que tenham concluído sequer a
infância.
Entre esses jovens, o Censo mostra que cerca de 87% dessas uniões são
consensuais, ou seja, sem formalização civil ou religiosa, o que agrava a
vulnerabilidade dessas meninas. O dado está detalhado pela Agência Patrícia
Galvão, e demonstra que a naturalização das chamadas “uniões precoces” persiste
no Brasil profundo, sobretudo em regiões marcadas por desigualdade, baixa
escolaridade e ausência de políticas públicas.
O retrocesso travestido de tradição
Há quem tente justificar tais uniões sob o argumento da “cultura local” ou da
“autonomia da família”. Mas não se trata de tradição: é violação de direitos. É
a negação da infância e da juventude — um tempo que deveria ser dedicado à
formação escolar, à construção da identidade e ao amadurecimento emocional.
A Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a
Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU são explícitos em proteger o
desenvolvimento integral do menor de 18 anos. Nada, portanto, justifica o
Estado tolerar, e menos ainda legitimar, uniões de adolescentes — muito menos
de crianças.
O avanço de 2019: a correção de uma distorção
Até pouco tempo atrás, o próprio Código Civil brasileiro previa exceções que
permitiam o casamento de menores de 16 anos em “casos excepcionais”, como
gravidez. Era o inciso II do artigo 1.521, interpretado em conjunto com o
artigo 1.517. Essa brecha legal legitimava uma prática social e cultural
perigosa: a ideia de que a maternidade precoce “justificaria” o casamento
infantil.
Felizmente, a Lei 13.811/2019 corrigiu o equívoco histórico, proibindo o
casamento de pessoas com menos de 16 anos, sem exceção. Ainda assim, o número
de uniões precoces, como demonstram os dados recentes do IBGE, mostra que a
mudança legislativa não foi suficiente para alterar práticas enraizadas.
União estável não é salvo-conduto
Alguns
argumentam que a proibição legal se limita ao casamento formal, e não à união
estável. Essa leitura é perigosa e distorce o espírito da lei. O Censo do IBGE
mostra que as uniões consensuais (sem formalização civil ou religiosa) já
superaram os casamentos no Brasil. Quando envolvem menores de idade, não há
nada de
“consenso”: há desigualdade etária, dependência econômica e, muitas vezes,
coerção.
Sob o ponto de vista jurídico, tais uniões não produzem efeitos válidos —
especialmente quando há incapacidade civil. Não se pode falar em “união
estável” entre uma criança e um adulto, ainda que haja convivência.
A própria noção de consentimento perde sentido quando o suposto consentidor não
tem maturidade para compreender o alcance de sua decisão.
O desafio cultural e jurídico
A persistência de uniões infantis revela que a lei sozinha não basta. É preciso
atuação integrada do Estado: educação sexual nas escolas, campanhas públicas de
conscientização, fortalecimento das redes de proteção e responsabilização de
adultos que se envolvam com menores.
Trata-se de uma questão de direitos humanos, não de costumes. E, do ponto de
vista jurídico, o casamento infantil é nulo — ou deveria ser tratado como tal
em qualquer esfera. Nenhuma tradição pode se sobrepor ao direito fundamental à
infância e à dignidade da pessoa humana.
O futuro que não pode esperar
Quando uma menina de 13 ou 14 anos entra numa “união conjugal”, o que ela perde
não é apenas o tempo: perde oportunidades, escolaridade, saúde, liberdade e
voz. Cada uma dessas 34 mil crianças em situação conjugal representa um
fracasso coletivo — da sociedade, do Estado e de todos nós que silenciamos
diante do inaceitável.
A infância não é lugar de contrato, de partilha de bens ou de compromissos
matrimoniais. É tempo de brincar, aprender e sonhar. Enquanto houver uma única
criança brasileira vivendo sob a aparência de um casamento,
não poderemos dizer que somos uma nação civilizada.
Marcelo Santoro
Almeida - professor de Direito de Família da Faculdade Presbiteriana Mackenzie
Rio
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